Autor: Maria Carolina de Melo Amorim
Advogada criminalista em Recife (PE), graduada pela UFPE com especialização em Direito Penal e Processual Penal
A aplicação da Lei 11.719/08 vem trazendo pertinentes discussões acerca da interpretação dos seus dispositivos. E não poderia ser diferente, considerando o número de mudanças por ela trazidas e de Juízos criminais que a ela se submetem.
Dessa forma, é certo que tanto o Ministério Público quanto a defesa se vêm impelidos a contestar posicionamentos divergentes de julgadores acerca do mesmo dispositivo penal.
Uma dessas discussões versa acerca do pronunciamento pós-apresentação da defesa preliminar do acusado. Muitos juízes, acostumados com os sucintos e (des)fundamentados despachos de recebimento da denúncia, vêm aplicando a mesma “escassez” de palavras para dar continuidade ao feito quando não vislumbram hipótese de absolvição sumária.
Pensamos, no entanto, que expressões como “não sendo o caso de absolvição sumária, designe-se audiência de instrução” não contemplam, em absoluto, o escopo do legislador em antecipar o contraditório, mormente quando a defesa preliminar sustenta argumentos a respaldar uma das hipóteses de absolvição sumária do artigo 397 do CPP.
A Constituição Federal determina, em seu artigo 93, IX que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…)”.
Para o Direito Penal, o artigo 93, IX da CF/88, além de garantir a transparência da decisão, evitando abusos e arbitrariedades e possibilitando o controle da decisão pelos órgãos judiciais superiores, tem inquestionável importância para o exercício do direito de defesa, para o qual se faz mister o conhecimento das razões de decidir.
É cediço, em contrapartida, que os tribunais brasileiros já firmaram posição no sentido de que o despacho de recebimento da denúncia prescinde de fundamentação. O argumento utilizado, nesse tocante, é que tal despacho não contém carga decisória: “O juízo positivo de admissibilidade da demanda, em primeiro grau, não necessita de fundamentação porquanto não se qualifica, em regra, de ato decisório, nos termos do art. 93, inciso IX, 2ª parte, da Carta Magna (precedentes do Pretório Excelso e do STJ)”.
É certo, também, que a lei processual em vigor, com relação aos delitos cujo procedimento já previa a apresentação de resposta à denúncia (p.e., crimes de responsabilidade de funcionário público) somente exige fundamentação da decisão na hipótese de rejeição da queixa ou da denúncia (art. 516), silenciando nos casos de recebimento da inicial, cuja natureza da manifestação judicial seria, então, de decisão interlocutória simples, exprimindo um juízo de mera admissibilidade da acusação realizado a partir da singela constatação do preenchimento de seus pressupostos formais. Dispensada estaria, por conseguinte, uma incursão aprofundada no mérito da acusação.
Nesse raciocínio, a adoção da defesa preliminar prevista pela reforma do CPP poderia seguir o mesmo procedimento, ou seja, apenas quando fosse o caso de absolver sumariamente o réu ter-se-ia a necessidade de expor as razões do decidir. Não é o que acreditamos, no entanto.
Ora, se a defesa reputa presente uma das causas de absolvição sumária, a decisão contrária ao seu requerimento, ao estabelecer o prosseguimento do feito, não pode ser comparada a uma decisão interlocutória simples, que prescinda de justificativa. Isto porque, com a divisão em duas partes do juízo de admissibilidade das imputações (art. 396, caput e art. 399, caput), estabeleceu-se uma nova oportunidade de análise da denúncia, desta vez não apenas formal, mas relacionada ao mérito da demanda penal, que implica em coisa julgada material. A decisão do magistrado acerca da situação posta, nesse momento, não pode fugir aos argumentos expostos pelo réu.
Assim, sem entrar nas discussões travadas na doutrina acerca do momento de recebimento da exordial, se quando da aplicação do art. 396, caput (hipótese de não rejeição) ou se por ocasião do artigo 399, caput (após a apresentação da defesa preliminar), afirmamos que, se no primeiro momento a análise judicial volta-se tão somente a verificar se a peça vestibular faz jus à composição dos artigos 41 e 395 do CPP, a situação é bem diversa quando o despacho se dá após a apresentação das razões de defesa, com pedido de absolvição sumária. Se as razões defensivas se voltaram ao mérito da demanda, estabelecendo o contraditório, a resposta jurisdicional não pode se furtar a apreciar a (in)viabilidade da persecutio criminis, sendo vedado ao julgador realizar ponderações vagas e imprecisas através de despachos meramente ordinatórios designando audiência de instrução e julgamento.
Entender de forma contrária, aliás, seria desconsiderar a importância da defesa preliminar, tratando-a como mera antecipação dos argumentos defensórios outrora trazidos somente em sede de alegações finais. Não pode passar despercebida, porém, a relevância que o legislador deu à apresentação daquela defesa, tornando-a peça obrigatória, ao exigir a nomeação de defensor ao réu se o advogado constituído não cumprir o prazo legal de 10 (dez) dias (art. 396-A, § 2º).
Ora, se a decisão pós-defesa preliminar prescindir da análise de qualquer dos pontos abordados naquelas razões, é certo concluir que o dispositivo que prevê a antecipação dos argumentos do réu se tornará, em pouco tempo, esvaziado. Assim sendo, poder-se-ia concluir que a lei deu azo apenas à obrigatoriedade — prejudicial, frise-se — de que a defesa revelasse, antes da instrução penal, as teses que pretende sustentar no processo, o que nenhuma vantagem traria àquela, vez que o juiz estaria autorizado a, através de um mero despacho de expediente não arrazoado, dar seguimento ao processo. Melhor saída seria, então, a defesa se limitar a arrolar testemunhas, como era estrategicamente adotado na defesa prévia da antiga redação do artigo 395 do CPP.
E não se diga que, não pretendendo o juiz aplicar a absolvição sumária, seria prejudicial ao réu a apresentação justificada de argumentos contrários às teses defensórias, em despacho a iniciar a instrução. Ora, uma vez já desnudas nos autos as teses de defesa, delas já tendo conhecimento o Ministério Público, conhecer o posicionamento do juiz acerca do assunto só traria benefícios ao acusado, convidando-o a aprimorar suas alegações quando da instrução penal e nas alegações finais, e, porque não, a analisar a viabilidade de interposição de habeas corpus para trancamento da ação por ausência de justa causa, acaso a justificativa apresentada pelo magistrado para continuidade da ação se despir de razoabilidade.
Dessa forma, quando visível o fumus boni iuris nas alegações sustentadas pela defesa em suas razões preliminares, e não obtida a absolvição sumária através de parcos argumentos que denotam, infelizmente, em alguns casos, a ausência de detida leitura da mencionada peça, seria o caso de a defesa embargar da decisão, alegando evidente omissão, na esteira de posicionamento da Súmula 152 das Mesas de Processo Penal(1), para a qual “embora a lei preveja embargos de declaração apenas de sentença e acórdão, qualquer decisão judicial pode ser embargada, enquanto não ocorrer a preclusão”(2). Provoquemos, assim, a manifestação dos juízes de 1º grau e dos Tribunais sobre o assunto.
Notas
(1) Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
(2) GRINOVER, Ada Pellegrini. Recursos no Processo Penal. São Paulo: RT, 2008, p. 225.
Maria Carolina de Melo Amorim
Advogada criminalista em Recife (PE), graduada pela UFPE com especialização em Direito Penal e Processual Penal
Fonte: https://www.ibccrim.org.br