A operação “lava jato” não para de nos surpreender. Não é de hoje que os advogados e juristas envolvidos reclamam uma análise menos açodada acerca da competência firmada nessa operação.
A competência de Curitiba adotou como critério o tema e, por ser temática, passou a aglutinar casos e fatos, como se tudo fizesse parte de um mesmo enredo, dividido em capítulos de uma mesma novela.
Na verdade, a competência do juízo curitibano para julgar tudo o que o Ministério Público entende como “lava jato” não resiste a uma análise, por mais que simplória. A origem primeira de toda a investigação nasce de procedimentos nos quais se evidenciou a manipulação de competência.
Em virtude de uma interceptação telefônica antes deferida, ao que tudo indica por juiz competente, constatou-se que o então diretor de Abastecimento da Petrobras havia recebido um veículo de luxo, como contrapartida de uma suposta propina. A partir daí, uma nova investigação surgiu, permanecendo no mesmo juízo a competência para sua apreciação e controle da legalidade. Na verdade, essa manipulação era o auspício do que viria a se tornar a operação “lava jato”, surgida e mantida com base na aplicação desvirtuada das regras que estabelecem a prevenção.
Restava claro que os novos fatos surgidos, fortuitamente encontrados por meio das interceptações implementadas, traziam elementos que, embora pudessem configurar, em tese, fatos ilícitos, eram diversos dos inicialmente investigados.
Tinha-se ali o surgimento do fenômeno denominado pela doutrina de encontro fortuito de provas ou serendipidade — “um neologismo que significa algo como sair em busca de uma coisa e descobrir outra (ou outras), às vezes até mais interessante e valiosa”.
Diante de tal hipótese, a conduta que deveria ter sido tomada pelas autoridades envolvidas, uma vez que não havia congruência entre o que se procurava investigar e o que efetivamente fora encontrado, era a imediata comunicação do fato descoberto ao juízo competente para aquela investigação, servindo a nova prova apenas como notitia criminis.
Ressalte-se que não se tinha uma conexão entre os fatos investigados, justamente porque não havia a existência de fatos concatenados que, porventura, formassem uma rede indissolúvel de atos, com claros liames objetivos e subjetivos. O fato de Youssef ter participado de antiga delação premiada perante o juízo da 13ª Vara de Curitiba, na qual teria se comprometido a não voltar a delinquir, bem como ter respondido por outros e anteriores crimes de lavagem de dinheiro perante aquele juízo, não torna, por evidente, o juiz Sergio Moro prevento.
A questão é de simples percepção, bastando adequar os fatos a uma nova tipologia. Imagine-se que Youssef estivesse respondendo a uma acusação de homicídio perante o juiz Sergio Moro. Porventura, nessa investigação, fosse determinada uma interceptação telefônica que levasse os investigadores a descobrir que, além daquele homicídio, Youssef teria praticado outro crime, de mesma natureza, com as mesmas armas e metodologia semelhante, diferenciando-se do anterior por ter sido praticado em outro município, em virtude de mando autor intelectual diverso. Tornar-se-ia competente o Jjuízo de Curitiba para julgar o novo caso em virtude da prevenção? Evidente que não.
Como se observa, o caso não é de descarte da prova obtida fortuitamente. Na realidade, o que se impõe é que, sendo a prova fortuitamente encontrada desconexa com os fatos inicialmente investigados — como ocorreu na “lava Jato”, seja valorada tão somente como notitia criminis, para que, a partir dela, possa ser desenvolvida a investigação pertinente pelo juiz naturalmente competente para a causa.
Na “lava jato”, a lógica funcionou às avessas. As autoridades — Polícia Federal, Ministério Público e juiz — adotaram postura totalmente inadmissível: em vez de reconhecer que os fatos se encontravam fora de sua esfera de atribuições, desmembrando a investigação, para remeter às autoridades competentes as provas colhidas como notitia criminis, continuaram investigando fatos que lhe eram totalmente estranhos.
Como se não bastasse, as investigações posteriormente conduzidas envolveram pessoas detentoras de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal.
Quando não, verificou-se nova manipulação do conteúdo das declarações prestadas pelos investigados com o objetivo de prevenir incompetência superveniente. Nesse sentido, extrai-se do depoimento de Alberto Youssef, prestado no bojo da Ação 5026212-82.2014.404.7000, como em tantas outras, no qual o juízo impediu a nominação de agentes políticos com o objetivo de não ensejar o deslocamento de competência.
É evidente, portanto, o manejo da prova produzida de forma a impedir o processamento do feito pelo juiz natural da causa, que é o Supremo Tribunal Federal.
Mas não é só. Além de todos esses argumentos, que denotaram a incompetência absoluta do juízo a quo para análise do feito, sabe-se também que os fatos não ocorreram no estado do Paraná e, mesmo que assim não fosse, não se submeteram ao sorteio legalmente definido entre as varas judiciais dessa seção judiciária do Paraná ou perante a subseção de Curitiba (incompetência relativa).
De todas as obras de refinaria da Petrobras, apenas uma (frise-se: apenas uma) localiza-se nos entornos de Curitiba, mais propriamente na cidade de Araucária.
Ademais, as licitações reputadas fraudadas não se realizaram no estado do Paraná, e as supostas reuniões entre empreiteiras ou entre pessoas de empreiteiras e da Petrobras também não se realizaram naquele estado. Sendo assim, não há sentido algum na supracitada alegação de existência de vínculo entre o processo e a cidade de Curitiba.
O certo é que essa competência temática chegou aos tribunais superiores, estabelecendo prevenções, tanto no STJ como no STF.
Recentemente, inclusive, foram homologadas pela presidente do Supremo Tribunal Federal as delações dos executivos e sócios da empresa Odebrecht, exclusivamente em face da morte do ministro Teori, que seria, segundo o Ministério Público, o ministro prevento para analisar a matéria. Com elas, e com a indicação do ministro Fachin como novo relator prevento para a “java jato”, sobrevieram diversas petições formuladas pela Procuradoria-Geral da República visando dar início às investigações criminais.
No bojo das peças fornecidas, todas dirigidas, desta feita, ao ministro Fachin, como juízo prevento, formataram-se requerimentos acerca da competência para a apreciação dos fatos relacionados, com pedidos de remessa a diversos outros juízos, inclusive.
Como se denota claramente, petições foram encaminhas à apreciação do ministro relator prevento, visando obter decisão acerca de matéria não afeta à sua própria competência e jurisdição. Ora, se a Procuradoria-Geral da República reconhece que alguns dos fatos relacionados à delação da Odebrecht não trazem correlação direta com a “lava jato” e, portanto, pedem o encaminhamento daquelas investigações ao juízo competente, não caberia ao ministro Fachin, sequer, essa apreciação.
Os fatos e as provas trazidas com as delações premiadas, que não guardem relação de conexão com a “lava jato”, devem ser cindidos e encaminhados ao critério e nuto da Procuradoria ao juízo competente. Não caberia qualquer análise do STF acerca de matéria que não fosse de sua real competência, mesmo que destinado a homologar esse entendimento.
O reflexo dessas distribuições diretas e açodadas, sem a análise detalhada das regras regimentais e legais acerca da prevenção, gerou inúmeras irregularidades. Petições foram encaminhadas ao ministro relator visando à remessa a um juízo de primeira instância, quando já existia inquérito judicial instaurado no STF para investigar os mesmos fatos ou fatos conexos e correlatos, envolvendo pessoas com foro privilegiado. Algumas, inclusive, obtiveram decisão favorável do ministro relator pela remessa a outros juízos, quando ele próprio já conduzia investigação anterior sobre os mesmos fatos. Obtiveram outros decisões semelhantes, quando já existia inquérito anterior sob a relatoria de outro ministro.
Mais recentemente, com a noticiada delação do proprietário da JBS Joesley Batista, novamente se observa a equivocada fixação de competência do ministro Fachin para apreciação e homologação do referido acordo de colaboração. Uma simples leitura da justificativa esboçada na petição endereçada ao ministro para fixação de sua competência denota a absoluta ausência de relação com os fatos apurados no âmbito da operação “lava jato”: envolvendo o pagamento de propinas a diretores da Petrobras ou a agentes políticos, tendo como contrapartida a prática de algum ato de ofício relacionado à estatal e em benefício dos empresários.
A motivação para a distribuição por prevenção ao ministro Fachin deveu-se às seguintes circunstâncias: a) suposta íntima relação com as apurações decorrentes da colaboração premiada do ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal Fábio Cleto, o qual relata irregularidades perpetradas no âmbito dessa empresa pública, em especial fraudes a empréstimos oriundos do FI-FGTS (Pet 6.122); b) existência de suposto pagamento sistemático de propina a parlamentares do Senado e da Câmara dos Deputados filiados ao PMDB e já investigados e denunciados sob a competência do ministro Fachin (INQ 4.326 e 4.327).
Em relação aos fatos relacionados a Fábio Cleto, convém ressaltar que os autos já foram remetidos à Justiça Federal do Distrito Federal, após a perda da prerrogativa de função do ex-deputado federal Eduardo Cunha, o que evidencia a ausência de correlação com os fatos apurados no âmbito da “lava jato”, posto que o referido procedimento não foi remetido para o juízo do Paraná.
Por conseguinte, a colaboração premiada de Fábio Cleto não tem o condão, por si só, de gerar a prevenção do ministro Fachin para análise do acordo firmado com Joesley Batista, a despeito deste ter mencionado a sua participação no pagamento de propina a Eduardo Cunha para obtenção de financiamento através do FI-FGTS da Caixa Econômica Federal.
Em relação ao pagamento sistemático de propina a parlamentares do PMDB, com prerrogativa de foro perante o STF, alega-se que a prevenção de Fachin estaria lastreada no funcionamento do mesmo modus operandi da suposta organização criminosa investigada na operação “lava jato”, embora não tenha qualquer relação com os fatos apurados no âmbito da Petrobras.
Ao se admitir a prevenção do ministro Fachin lastreada em tal justificativa, estar-se-ia fixando sua competência para apreciar os acordos de colaboração premiada que relatem qualquer esquema de pagamento de propina feito por empresários a agentes públicos e políticos para obtenção de vantagens indevidas, cujo beneficiamento se alcançará por via de doações eleitorais.
Por fim, alega-se, de forma surpreendentemente genérica, como motivação para a prevenção de Fachin, a obstrução da Justiça quanto ao avanço da operação “lava jato”, malgrado não se tenha apontado, minimamente, quais procedimentos específicos estariam sendo objeto de intervenção.
Percebe-se, pois, que a competência do ministro Fachin para apreciação e homologação da colaboração premiada dos executivos do Grupo J&F foi fixada em decorrência, unicamente, dos autores delatados já estarem respondendo a outros inquéritos instaurados em decorrência da operação “lava jato” e em razão de ser observada a mesma mecânica de repasse de vantagens indevidas na forma de doações eleitorais, oficiais ou não. Em evidente ineditismo às regras processuais penais vigentes, estabeleceu-se a competência temática de autor.
Fixou-se, assim, o binômio de competência Moro-Fachin para apreciar todos os fatos envolvendo empresários e agentes políticos que já estejam, de alguma forma, imbricados em algum procedimento apurado no âmbito da operação “lava jato”. Como se esses juízos já estivessem universalmente legitimados a analisar todo e qualquer acordo de colaboração premiada envolvendo os agentes políticos do país que tenham recebido propina ou doações eleitorais, ainda que os fatos delatados não guardem qualquer relação de pertinência com as ilegalidades perpetradas no âmbito da Petrobras.
Como se pode depreender, o desrespeito ao princípio do juízo natural vem sendo reiteradamente observado durante toda a “lava jato”, em nome dos bons resultados auferidos e, agora, extrapola o espectro de atuação da própria operação.
Dos princípios jurisdicionais, o do juiz natural é um dos mais relevantes do ordenamento jurídico pátrio. Há de se observar que o juiz natural conjugado com o princípio da ampla defesa e do contraditório, pelo que se detém ser a garantia do juízo competente, além de direito individual elevado ao status de cláusula pétrea, é um direito adquirido do acusado.
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o assunto e de forma irretocável traduz a finalidade do princípio do juiz natural como forma de garantir a imparcialidade do juiz e a ofensa ao justo processo da lei (due process of law).
Impõe-se, portanto, o dever de assegurar os direitos básicos que resultam do postulado do devido processo legal, notadamente as prerrogativas inerentes à garantia da ampla defesa, à garantia do contraditório, à igualdade entre as partes perante o juiz natural e à garantia de imparcialidade do magistrado processante.
A “lava jato” pode ser inédita, mas não pode fugir do encontro com a lei, subverter a ordem legal, desmoralizar o Direito brasileiro. O argumento de que essa operação foge aos casos comuns, ou precisa ser analisada com outros paradigmas, reforça o argumento do Estado de Exceção.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2017-mai-24/ademar-rigueira-neto-manipulacao-juiz-natural-lava-jato