Por: Maria Carolina de Melo Amorim e Filipe Oliveira de Melo
Introdução
O combate à corrupção e ao crime organizado são a ordem do dia da sociedade brasileira, especialmente depois dos desdobramentos da “Operação Lava Jato”. Nem mesmo para o cidadão mais desatento às questões sociopolíticas do Brasil, os termos “corrupção sistêmica”; “crime organizado”; “prisão preventiva” passam sem o registro de uma opinião pessoal.
Em meio à crise econômica brasileira, cujas consequências ainda não foram solvidas, os temas acima mencionados foram rapidamente associa- dos à causa dos efeitos práticos da crise. Não por acaso, vivencia-se, ainda hoje, um clima de “caça às bruxas” cujos alvos principais e mais vistosos são políticos e empresários. Neste cenário, os órgãos de persecução criminal ganharam notável respaldo social para suas ações, mesmo que pouco ortodoxas e muitas vezes claramente contrárias à Constituição, sufocando diretamente garantias fundamentais mínimas.
A violação reiterada de tais garantias despertou a atenção dos atores políticos à grande lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro acerca da persecutio criminis dos atos de abuso de autoridade. É natural que, numa democracia tão recente e vacilante como a brasileira, os freios ao autoritarismo ainda estivessem em vias de desenvolvimento.
Em setembro de 2019, um limite ao crescente autoritarismo promovido pelos órgãos de persecução e investigação eclodiu na forma da nova Lei de Abuso de Autoridade, a qual, apesar dos vetos, avançou nitidamente na criminalização de atos abusivos praticados por agentes estatais. O avanço é notável, seja por efeito comparativo com a lei anterior (Lei nº 4.898/65), seja pelo fortalecimento do tino democrático da sociedade brasileira – mesmo que, com relação ao rigor punitivo, pouco se tenha evoluído.
Independente disso, a nova lei não ficou livre das mais diversas críticas. Infelizmente, os principais ataques se pautaram na lógica do terror, indicando a nova legislação como obstáculo ao combate à corrupção. Nessa lógica, segundo os críticos, a aprovação da lei 13.869/19 seria parte de um projeto arquitetado por políticos corruptos com o objetivo de se livrarem da justiça criminal1. Alegou-se, ainda, que a nova lei de abuso tipificava a interpretação diversa da lei e a autonomia da decisão do juiz, ou seja, seria criminalizada a interpretação dos dispositivos legais2 quando essa contrariasse determinados interesses de uma classe política.
Tais críticas pareciam dirigidas unicamente aos ouvidos do cidadão leigo, uma vez que a simples leitura do artigo primeiro do texto da nova lei de abuso já demonstrava que a divergência na interpretação da legisla- ção e a divergência na avaliação dos fatos e provas para tomada de decisão configuram causa excludente de tipicidade expressa (art. 1º, §2º). E mais: ainda que tal causa excludente não se encontrasse expressamente pre-
1 Nesse sentido, o procurador da República que atua na Força tarefa da Lava Jato, Del- tan Dallagnol, por exemplo, afirmou perante a imprensa que, se a lei fosse aprovada, os juízes iriam agir com preocupação ao prender poderosos, o que poderia configurar um obstáculo na luta contra a corrupção (https://congressoemfoco.uol.com.br/corrupcao/ dallagnol-entra-em-campo-contra-projeto-de-abuso-de-autoridade-no-senado/). No mesmo sentido, diversas entrevistas de autoridades relacionadas ao Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos policiais. A título exemplificativo: (I) https://www.migalhas. com.br/quentes/309443/delegado-da-pf-critica-projeto-de-abuso-de-autoridade-nao-e–bom -para-o-combate-a-corrupcao; (II) https://theintercept.com/2019/08/18/lei-abuso–autoridade-lava-jato-corporativismo/; (III) https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/01/03/interna_politica, 817967/lei-do-abuso-de-autoridade-entra–em-vigor-hoje-sob-criticas.shtml
2 Nesse sentido, em nota pública divulgada pela Procuradoria Geral da República ainda durante a tramitação do projeto de lei e logo após a sua aprovação pela Câmara dos Depu- tados, alegou-se que “o PL levará ao enfraquecimento das autoridades dedicadas à fisca- lização, à investigação e a persecução de atos ilícitos e na defesa de direitos fundamen- tais, ferindo a independência dos poderes e permitindo a criminalização de suas funções essenciais”. Fonte: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/notapublicaccrsepfdc.pdf acesso em 20.01.2020.
A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E O ELEMENTO SUBJETIVO ESPECIALÍSSIMO…
vista na lei, o aplicador do direito poderia listar outros argumentos que afastassem a imputação penal da divergência interpretativa, como erro de tipo e ausência do animus de agir de forma abusiva. Por óbvio, aquele que atua em abuso de autoridade por acreditar que está cumprindo fielmente a lei em vigor não pode responder pelo crime, por flagrante ausência de dolo e inexistência da figura típica na modalidade culposa.
Além da referida cláusula, previu-se na nova lei, ainda, que as condutas só constituirão crime de autoridade acaso tenham como propósito “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1º, §1º). Trata-se, na perspectiva dogmática, do que já se convencionou denominar “elemento subjetivo especial do tipo”.
Com ambas as previsões dos §§ 1º e 2º do art. 1º, dois argumentos foram construídos para bloquear a imputação penal. Ou a conduta não será típica porque o agente não foi movido pelos objetivos descritos (quais sejam, de prejudicar alguém, de beneficiar-se ou favorecer terceiro, de praticar o ato por mero capricho ou de satisfação pessoal), ou não será típica porque a conduta se manteve dentro dos limites da divergência interpretativa ou valorativa permitida.
A rigor, a intenção do legislador foi a de separar claramente as autoridades que erram e interpretam equivocadamente a lei ou avaliam erroneamente os fatos narrados e a prova produzida – como pode ocorrer a todos os nascidos sob o peso da condição humana – daquelas autoridades públicas que agem e decidem motivados por objetivos não democráticos. O que se quis, como se nota, foi dirimir quaisquer dúvidas entre o mau entendimento e a ação verdadeiramente abusiva.
Não obstante, o intuito do legislador, ainda que digno, resultou na criação de novos problemas para o jurista crítico.
Na prática, as limitações trazidas no artigo 1º da nova lei de abuso podem obstruir o intento punitivo legítimo sobre agentes públicos que praticam atos verdadeiramente abusivos. Isso porque, a dificuldade de comprovação dos especiais elementos subjetivos previstos no art. 1º, §1º, associado à falta de densidade daqueles conceitos subjetivos, atua como obstáculo à verificação da tipicidade penal. Não bastasse isso, a exclu- dente de tipicidade do §2º representa um inoxidável escudo à constatação do tipo, a ser afastado com muita dificuldade pelos órgãos de persecução que investigam o abuso.
É precisamente a esse ponto a que este artigo se dirige. Será discutida a natureza jurídica de ambas as cláusulas (§§ 1º e 2º) e como elas se articulam com a imputação dos crimes de abuso de autoridade tipificados na Lei nº 13.869/19.
1. A exigência do dolo especialíssimo e sua natureza
No direito penal, o juízo de atribuição de culpa se funda, num primeiro momento, na adequação objetiva entre o fato (ação ou omissão) e os ele- mentos descritivos e normativos do tipo legal. Busca-se, também nesse momento, verificar as possíveis conexões causais entre o desvalor da conduta proibida e o resultado juridicamente desvalioso3.
Não é por acaso que a essa tarefa de montagem ou reconstrução dos elementos objetivos do fato criminoso e a sua ligação causal com uma conduta é denominada pela doutrina como “imputação objetiva do resultado à conduta” 4.
Assegurada a imputação objetiva, o segundo momento de atribuição de culpa é iniciado: a imputação subjetiva, cuja finalidade é conectar a consciência (saber) e a vontade (querer) do agente na prática do crime. Já aqui se pode perceber, sem maiores digressões, que os pilares da atribuição da imputação subjetiva, ou seja, do vínculo subjetivo entre o ato e o resultado, são precisamente dois elementos, quais sejam: o intelectual e
o volitivo. A presença mais ou menos forte de um ou de ambos os elementos é o que define a qualificação da conduta como dolosa ou culposa5.
Ao que nos importa, a conduta dolosa se assenta numa presença forte do elemento intelectual, consubstanciado na representação do resultado e nos meios pelos quais tal resultado poderá ser produzido, e numa presença igualmente forte do elemento volitivo, seja por um querer direto,
3 Palma, Maria Fernanda. Direito Penal: a teoria geral da infração como teoria da decisão penal.5ª ed. AAFDL: Lisboa, 2020, p. 107.
4 Palma, Maria Fernanda. Op. Cit, p. 109.
5 Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Questões Fundamentais a Teoria Geral do Crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 349-350
seja por uma aceitação sem qualquer remorso de que o resultado desva- lioso possa vir a ser produzido.
Nesse sentido, Faria Costa elucida que: “o dolo nada mais é do que a passagem da potência de conhecer e querer ao ato de efetivo conhecer e querer”6. O conhecer e o querer do agente, entretanto, dizem respeito ao conhecimento dos elementos típicos da norma penal que se projetam sobre o fato e o desejo de praticar a conduta necessária para o apareci- mento do resultado planejado, bem como a apropriação dos resultados desvaliosos produzidos.
Vale destacar, porém, que a distinção entre as condutas culposa e dolosa recai, decisivamente, no elemento volitivo. É que o elemento intelectual (representação / consciência) também se encontra presente nas condutas culposas, como na culpa consciente, na qual a representação do agente em nada se diferencia acaso se estivesse diante de uma conduta dolosa.
A propósito, Figueiredo Dias ensina que “é, pois, o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual requerido, que verdadeiramente serve para indiciar (embora não para fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, numa palavra, uma culpa dolosa e a consequente possibilidade de o agente ser punido à título de dolo”7.
Diante da decisividade do elemento volitivo na distinção entre condutas dolosa e culposa, estimula-se a criação de tipos penais cujo tipo subjetivo seja complementado, para além do dolo, por elementos de intenção e querer que possam revelar um especial tendência desviante do agente. Não se trata do simples dolo da conduta (genérico), mas de elementos subjetivos “extra dolo do tipo”, que a ele se associam na demonstração de uma atitude interna manifestamente antijurídica. São eles os especiais elementos do tipo subjetivo8.
O uso pelo legislador de tais elementos especiais subjetivos (intenções, motivos, impulsos afetivos etc.) é extremamente delicado, pois
6 Costa, José de Faria. Direito Penal. Lisboa: Imprensa Nacional, 2017, p. 399
7 Dias, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Questões Fundamentais a Teoria Geral do Crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 350
8 Roxin, Claus. Derecho Penal: parte general. 2ª ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 309-310
raramente se materializam em fatos externos: na esmagadora parte dos casos, não extrapolam a esfera íntima do indivíduo. Até porque, “o mundo psíquico do agente é simplesmente inacessível ao conhecimento do intérprete ou julgador”9.
A discussão tem valor inegável para o tema aqui discutido, na medida em que se os especiais elementos subjetivos estiverem à serviço da caracterização de um delito de certa espécie e estiverem perceptíveis nos elementos normativos do tipo – como em parte das vezes estão, quando esses últimos elementos se referem a juízos de valores claramente antijurídicos, a exemplo dos termos “manifestamente” ou “injustamente” –, a verificação da tipicidade se deduz pela própria ocorrência da conduta.
Não se quer dizer com isto, atente-se, que será dispensável a busca pelo dolo, mas que ao constatá-lo em face de um tipo penal recheado de elementos outros que reflitam claramente uma intenção antiética, os especiais elementos subjetivos poderão ser encarados como inerentes à ação. Entendemos por essa linha de pensamento, diante da clara intenção do legislador brasileiro.
É dizer, a prática da conduta típica pressupõe que o agente tenha se motivado segundo os especiais elementos do tipo subjetivo definidos no tipo legal, em probabilidade para além do razoável, pois o conjunto, sobretudo, de elementos normativos a serem valorados induzem, de imediato, um valor moral, ético, social ou cultural vinculado à ilicitude do ato.
Tal ideia perpassa pelo conceito de co-consciência imanente à ação, o qual surge em meio ao debate da exigência da consciência sobre os elementos fáticos do ilícito, procurando-se definir se a consciência para representação deve ser aquela refletida e ponderada, ou se é necessária apenas a consciência atual dos elementos de fato para se atestar a presença do dolo10.
A consciência atual não é, necessariamente, a representação de todos os termos e elementos de um tipo no momento da prática criminosa, até porque, se fosse esse o caso, apenas juristas experientes poderiam
9 Costa, José de Faria. Direito Penal. p. 406
10 Stratenwerth, Gunther; Kuhlen, Lothar. Strafrecht Allgemeiner Teil: Die Straftat. Vahlen franz Gmbh, 2011, §8, nº 76. Apud DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal. p. 356.
cometer crimes dolosos. A consciência atual requerida para a configuração do tipo subjetivo seria aquela que representa e apreende os elementos fáticos, mas também poderia consistir naquela “co-consciencializada”, ou seja, a não explícita, assumida pela consciência por meio de outros conteúdos conscientemente considerados11. Nesse raciocínio, também essa “co-consciência”, implícita, deve ser entendida como incorporada à consciência atual, suficiente à caracterização do dolo.
A construção da co-consciência imanente se articula com o estudo dos crimes de abuso de autoridade porque os tipos penais presentes na nova lei são ricos em elementos (normativos, descritivos, objetivos, pessoais, etc.) que se referem diretamente à valores de juízo antiético e às questões inerentes à má prática funcional. A proximidade de tais juízos de corres- pondência entre os valores éticos, a conduta abusiva e a má prática, todos no tipo penal, fornece indícios marcantes de que o agente se motivou por razões contrárias ao Direito e à ordem ética, e já poderiam, por si sós, comprovar a consciência do agente para perfazer o dolo exigido.
Em outras palavras, a consciência exigida para a caracterização da tipicidade abarcaria também aqueles conhecimentos que indiretamente pudessem acender o sinal vermelho da consciência do agente acerca da ilicitude de sua conduta. Por exemplo, um guarda prisional que pratica atos sexuais com alguém que se encontra custodiado, abusando de suas funções. Dificilmente no momento do crime o guarda iria lembrar exa- tamente de quais entre os deveres atinentes à função por ele ocupada estaria sendo violado ou até mesmo iria se lembrar da existência de tais deveres para se conscientizar de que estaria abusando de suas funções. Nesses casos, Stratenwerth afirma que sobre o agente recai um “perma- nente saber acompanhante”12, que bastaria para confirmar o dolo do tipo. Mas a caracterização do dolo não será assim cristalina em todas as impu- tações de abuso de autoridade e, em casos de dúvida quanto ao conheci- mento implícito, valeria a máxima do in dubio pro reo.
11 Como formulou Platzgummer, a partir da construção de Rohracher (Platzgummer,
Die Bewusstseinsform des Vorsatz. Eine strafrechtsdogmatische Untersuchung auf Grundlage, 1964,
- 83. Apud Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal. p. 355)
12 Stratenwerth, Gunther; Kuhlen, Lothar. Strafrecht Allgemeiner Teil: Die Straftat. Vahlen franz Gmbh, 2011, §8, nº 76. Apud Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal. p. 356
A tipicidade objetiva e subjetiva da conduta (tendo como referência os crimes de abuso de autoridade) estaria, portanto, satisfeita, quando o agente público viesse a praticar atos abusivos cujo valor ético-jurídico estivesse próximo daqueles inerentes à função ocupada. Nesse caso, bataria que o agente conhecesse os pressupostos materiais da valoração para se afirmar a existência do dolo, posto que o conhecimento de tais pressupostos já orientaria (ou deveria orientar) suficientemente a consciência do agente ao desvalor global do fato13.
O que acaba de ser dito nos leva a outra reflexão: se a cláusula prevista no artigo 1º, §1º, da Lei nº 13.869/2019 não se trata, na realidade, de ele- mentos vinculados à ideia de juízo de culpabilidade e não de exclusão de tipicidade. Isso porque, como afirmou Roxin a respeito dos especiais ele- mentos subjetivos, “cuando un elemento no se refiere al tipo delictivo, sino que unicamente describe motivos, sentimientos y actitudes internas independientes de àquel ( y agravantes por regla general), se trata de elementos de la culpabilidade”14. Em outras palavras, a cláusula presente no §1º do artigo 1º não teria a natureza de excludente de tipicidade, mas de suporte ao juízo de culpa15. Ocorre que o legislador, ao pensar a Lei 13.869/2019, optou por defi- nir que as condutas ali tipificadas só serão consideradas penalmente relevantes quando o agente tenha agido com a “finalidade específica de
13 Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal. p. 354-355
14 Roxin, Claus. Derecho Penal: parte general. p. 312
15 Ora, é inegável que os intuitos de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” são atitudes internas e motivos que movem o agente à prática de um ato ilícito, mas a pergunta que deve ser feita é: se tais atitudes internas definem a caracterização do tipo penal ou revelariam apenas um maior desvalor na culpa. No primeiro caso, o disposto no §1º se comportaria como causa excludente de tipicidade. Sem a presença desses especiais elementos não haveria relevância penal no comportamento. No segundo, seriam parâmetros para a avaliação da culpabilidade do agente, as quais teriam sido equivocadamente levadas ao tipo penal. Francisco Muñoz Conde reconhece que os especiais elementos subjetivos não coincidem com o dolo, mas o legislador poderia, sim, requisitá-los para a fundamentação do injusto. Ou seja, para além do conhecimento e a vontade de praticar a conduta típica, poderá ser exigida um ânimo especial ou tendência subjetiva do agente. Em outras ocasiões (que não essas nas quais o legislador os levou ao tipo), o especial elemento do tipo pertenceria à culpabilidade (Muñoz Conde, Francisco; Arán, Mercedes García. Derecho Penal: parte general. 8ª ed. Valencia: Tirant lo blanch, 2010, p .274-275).
prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Logo, o que caracteriza os tipos dos crimes de abuso é, além da manifesta contrariedade objetiva do ato com Direito (como se extrai das condutas tipificadas), uma especial intenção de agir.
E mais: tal intenção especial é o grande divisor de águas entre uma conduta fora dos padrões da normalidade, mas sem relevância penal, e uma conduta penalmente típica, mesmo que seja de difícil aferição pro- batória. Ou seja, os crimes de abuso de autoridade se distinguem de condutas tecnicamente duvidosas justamente pela intenção revelada pelo agente no fato.
Não obstante a dúvida doutrinária existente entre a localização sistêmica dos motivos e das intenções pessoais do agente, comungamos da posição defendida por Gunther Jakobs em sua distinção quanto à função desempenhada por tais ânimos de agir na configuração do crime. Segundo ele, caso tais elementos especiais sirvam para punir a reprovabilidade da vontade de agir, estariam localizados na culpa; e quando ser- virem para estabelecer a relação de finalidade elaborada pela vontade de agir, o ideal seria interpretá-los como elementos do tipo subjetivo16. A diferença reside, portanto, em se o especial elemento subjetivo se presta a definir o grau de culpa ou caracterizar fundamentalmente a conduta penal.
Entendemos que o legislador brasileiro quis mesmo priorizar tal segunda opção, colocando a finalidade de agir como elemento necessário à caracterização típica de todas as condutas previstas na lei, a partir da sua previsão nas disposições gerais da lei 13.869/19.
Por consequência disso, os especiais elementos subjetivos definidos na Lei nº 13.869/19 devem ser encarados como pertencentes ao tipo subjetivo, sem os quais se afastaria qualquer juízo de tipicidade subjetiva.
Já com relação ao elencado no §2º, houve expressa previsão de excludente de tipicidade penal, ao dispor a lei que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade. O raciocínio lógico, quando se conjuga ambos os parágrafos do
16 Jakobs, Gunther. Derecho Penal: parte general (Fundamentos y teoria de la imputación). Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 373
artigo 1º, é que quem age por interpretação equivocada da lei, dos fatos ou das provas apresentadas não estaria, logicamente, imbuído da moti- vação desviante explícita no §1º, mas sim atuando sob um condição de mero desacerto quanto a conduta adotada. Embora tal raciocínio já fosse previsível (a indicar a desnecessidade da própria previsão do §2º), agiu com redobrada cautela o legislador, afastando as críticas de que haveria punição ao simples exercício das funções das autoridades.
1.1. A finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro e o mero capricho ou satisfação pessoal
Como já delineado na introdução, a exigência de caracterização do dolo especial de motivação veio expressamente prevista na introdução da lei, a qual funcionou como uma espécie de “disposições gerais” (só que ab initio) para cumprir uma importante missão: a de esclarecer às autori- dades que o exercício da função pública imbuído de bons sentimentos, ainda que atinja o direito de terceiro, não poderia caracterizar abuso de autoridade.
Em outras palavras, a decisão ou o ato equivocado, mal utilizado, ou errôneo, ou simplesmente diverso de outros considerados mais acerta- dos, não representam, sobremaneira, abuso de autoridade. Para a configuração do abuso, especifica a lei, é preciso que essa decisão ou esse ato tenha sido praticado com a finalidade especial de prejudicar outrem ou beneficiar-se a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, que tenha sido praticado por mero capricho ou satisfação pessoal. Trata-se, como visto, de uma exigência do tipo subjetivo e, consequentemente, sua ausência exclui a tipicidade penal (já que o dolo está no tipo).
É claro que algumas condutas previstas na nova lei, por si sós, já têm o condão de caracterizar esse mau uso do poder da autoridade, sem que seja necessária buscar-se a comprovação da finalidade de agir. É o caso do exemplo do artigo 13, II, da lei, que prevê a conduta de constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a “submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei”. Imagine que o detento foi, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência (elementos exigidos no caput do art.13), submetido à prática de atos sexuais com o carcereiro. Um típico exemplo que nos vem à mente
são os relatos de humilhações sexuais e torturas dos presos da prisão de Guantánamo com relação aos policiais guardiões da prisão, amplamente divulgado em documentos internacionais e em obras publicadas sobre aquelas custódias17. É clara a percepção da motivação desviante do mero capricho ou satisfação pessoal, e a intenção flagrante do prejuízo do detento. Ora, nesse caso mencionado, não há como argumentar que não havia o pleno entendimento das autoridades acerca da proibição legal daqueles atos vexatórios, mormente porque houve, também, a redução da capacidade de reação do custodiado.
No entanto, alguns tipos da nova lei abrem espaço para a dificuldade da comprovação do dolo da conduta, a exemplo da conduta descrita no artigo 15, de “constranger a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo”. Isso porque, para comprovar que um agente policial ou um juiz agiu com abuso de autoridade ao chamar e obrigar a depor como testemunha, por ex., um psicólogo que devia guardar sigilo profissional, para que ele conte tudo o que sabe sobre aqueles fatos em investigação, ter-se-ia de demonstrar que ele agiu por capricho ou satisfação pessoal, ou com o intuito de prejudicar/beneficiar pessoas, e não estava, portanto, imbuído do objetivo lícito e legítimo de tão somente desvendar os graves fatos criminosos da investigação que presidia. Caberá ao órgão acusatório tal difícil tarefa de demonstração dos elementos especialíssimos subjetivos do tipo para a caracterização do abuso de autoridade, portanto.
A finalidade específica de prejudicar alguém, beneficiar-se ou beneficiar terceiro, pode representar a concretização de interesses de ordem moral, política, patrimonial, social ou pessoal, e é de difícil constatação, porque cinge-se à mera intenção do agente, relacionada a seus processos psíquicos, os quais muitas vezes não são demostrados no mundo exterior. Desse raciocínio se extrai que outros fatos e condutas do agente deverão ser usadas para comprovar a motivação, como sói ocorrer nos crimes que exigem dolo específico.
E o que poderia ser definido como mero capricho ou satisfação pessoal?
17 Khan, Mahvish Rukhsana. Diário de Guantánamo: os detentos e as histórias que eles contaram. Tradução Constantino K. Korovaeff. São Paulo: Larousse, 2008.
Segundo o dicionário, mero capricho pode ser definido como vontade súbita sem justificativa ou sem razão, ou por teimosia, ou, ainda, obstinação injustificada18.
Para Juarez Cirino, o mero capricho ou satisfação pessoal são estados psíquicos ou tendências psíquicas especiais definíveis como motivos do agente, de natureza emocional ou afetiva, cuja existência real se exaure no âmbito da subjetividade do autor, ou seja, não precisam demonstrar-
-se no mundo exterior, embora existam como força propulsora da ação19. Não se olvide de que o legislador brasileiro já trouxe situação parecida com a disposição do crime de prevaricação (artigo 319 do CP), no qual é punido o retardo ou a omissão indevida de ato de ofício, ou a prática do ato contra disposição de lei, quando praticados para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Nesse caso, a doutrina especifica que tal interesse pessoal pode ser qualquer proveito, ou vantagem auferido pelo agente, não necessariamente de ordem patrimonial, enquanto sentimento pessoal é a disposição afetiva do agente em relação a algum bem ou valor: o funcionário que, para fazer um favor e beneficiar outrem, retarda ato de ofício pratica a prevaricação agindo com interesse pessoal; enquanto aquele que retarda o ato para atrapalhar um inimigo, o faria sob o móvel do sentimento pessoal20. O mesmo raciocínio pode ser aqui aplicado aos tipos de abuso de autoridade, para explicar as hipóteses nas quais o abuso é praticado por satisfação pessoal, nela podendo ser incluídos os impulsos relacionados ao sentimento e interesse pessoal, como disposição afetiva ou repulsa, vingança, ou formas de garantir ao agente seu prazer ou deleite com o ato
abusivo.
1.2. A divergência de interpretação do §2º do art. 1º
O §2º do art. 1º claramente veio afastar as críticas calcadas no medo de algumas autoridades de que houvesse punição pelo simples exercício do
18 Spitzer, Carlos. Dicionário analógico da língua portuguesa. 2ªed. Editora Globo: Rio de Janeiro, 1962, p. 21
19 Santos, Juarez Cirino dos. Lei de abuso de poder ou de proteção da autoridade? Boletim IBCCRIM, Março de 2020.
20 Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª Edição. São Paulo: RT, 2010. Pág. 1116.
poder, como meio de “revanchismo” contra os avanços de operações e processos judiciais. Mal a lei entrou em vigor, foram prolatadas algumas decisões revogando prisões preventivas antes decretadas ou liberando valores de penhora, utilizando-se do argumento de receio de incidência da nova lei21. Tal receio não é mais cabível diante da expressa dicção do 2º.
A divergência do §2º pode ser de três tipos: interpretação equivocada da lei, avaliação errônea dos fatos apresentados à autoridade ou avaliação equivocada das provas apuradas.
Quanto à primeira hipótese (interpretação equivocada da lei), o pro- blema inicialmente verificado é a amplitude das hipóteses de divergên- cia, já que na maioria das possibilidades delitivas trazidas na lei pode-se alegar ter havido erro sobre tal interpretação. Nesse raciocínio, qualquer divergência de compreensão da lei, como construção psíquica de inter- pretação pessoal, é suficiente para excluir o crime, independente do fun- damento jurídico e da consistência do argumento divergente22.
Em termos dogmáticos, a aludida cláusula pode ser encarada como uma excludente de tipicidade objetiva. No entanto, certamente não será toda e qualquer divergência interpretativa suscetível de ser agraciada pela cláusula do §2º do artigo 1º. Isso porque, a divergência de interpre- tação deverá se manter nos padrões da normalidade de discordância na ciência jurídica, de natureza discursiva.
Portanto, a “divergência na interpretação” deve ser considerada den- tro do parâmetro da razoabilidade das condutas ou decisões passíveis de
21 Por exemplo, decisão adotada nos autos do processo 2641-40.2017, em 25.09.2019, pela juíza Pollyanna Maria Barbosa Pirauá Cotrim, da 1ª Vara do Tribunal do Júri da comarca de Garanhuns/PE, que revogou a prisão preventiva de 12 acusados de integrar uma organização criminosa, em verdadeiro “protesto” contra a edição da lei, na medida em que assim dispôs: “Apesar da gravidade do crime, em tese praticado, com advento da Lei nº 13.869/2019, tornou-se crime manter alguém preso quando manifestamente cabível sua soltura ou medida cau- telar. Ocorre que a expressão ‘manifestamente’ é tipo aberto, considerando a plêiade de decisões nos mais diversos tribunais brasileiros e até mesmo as mudanças de entendimento do Supremo Tribunal Federal. Diante disso, enquanto não sedimentado pelo STF qual o rol taxativo de hipóteses em que a prisão é manifestamente devida, a regra será a soltura, ainda que a vítima e a sociedade estejam em risco”.
22 Santos, Juarez Cirino dos. Op. Cit., 2020.
punição pela nova lei de abuso de autoridade. Em outras palavras, acaso o ato ou decisão se descole de modo grave do padrão normal de discor- dância interpretativa, a conduta será penalmente relevante. Um exemplo nesse sentido é a decretação de prisão preventiva tão somente baseada na prolatação de sentença condenatória, sem que a decisão judicial se socorra de qualquer fundamento do art. 312 do CPP. É conhecida pelos operadores do direito a revogação do antigo dispositivo do artigo 594 do CPP, que exigia o recolhimento à prisão para processamento do recurso defensivo, bem como a exigência de fundamentação para decretação da medida prisional e a sua excepcionalidade, de forma que a aplicação da prisão processual sem a análise, por mais simples que seja, da observân- cia dos seus requisitos da lei, fugiria à racionalidade trazida pelo §2º ora comentada. Diferentemente é o caso no qual o juiz, analisando expressa- mente as hipóteses do art. 312 do CPP, entendeu que a prisão seria cabível ao caso concreto, quando a cautelar poderia ser facilmente substituída por outra medida menos gravosa. Nesse último caso, trata-se de plena divergência na interpretação da lei, justamente a hipótese resguardada no §2º para excluir a tipicidade penal.
Não se nega, contudo, a dificuldade de comprovação dessas situações.
Já com relação à avaliação equivocada dos fatos ou das provas, antes de mais nada, deve-se atentar que todo processo de conhecimento é nascido do sistema de referência individual do sujeito23. Em outras palavras, é a experiência de vida de cada um que determinará o seu conceito das coisas, sua visão e sua avaliação sobre fatos e circunstâncias. Tal sistema explica a diferente visão que cada operador do direito detém sobre determinado fato, adotando-se decisões completamente díspares em casos idênticos24.
23 O sistema de referência pode ser definido como a vivência particular, sensorial e empí- rica que cada um detém para a construção de sua interpretação dos objetos. Nas palavras de Fabiana del Padre Tomé, “Cada pessoa, conforme seus sistemas de referência, ou seja, suas vivências, dispõe de um particular e específico saber de. É uma consequência disso que um mesmo evento ou um único fato podem ser interpretados diferentemente pelos indivíduos” (Tomé, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2005. p. 8).
24 Amorim, Maria Carolina de Melo. A sentença penal e o método de decisão do cons- trutivismo lógico semântico: as influências do magistrado na criação da norma penal individual e concreta. In: As Contribuições do Construtivismo Lógico Semântico para
Ao tratar da subjetividade do conhecimento judicial, Ferrajoli explica que o Juiz está sempre condicionado pelas circunstâncias ambientais nas quais atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações, suas emoções e seus valores éticos-políticos25. O mesmo raciocínio pode ser estendido às demais autoridades às quais se sujeitam à lei 13.869 e que, em seus atos, exercem atividade interpretativa e valorativa.
Assim, também se torna de difícil averiguação a percepção da própria avaliação dos fatos e provas que eram acessíveis ao agente quando da prá- tica do ato supostamente abusivo. De qualquer sorte, são aqui válidos os já abalizados raciocínios sobre o erro de tipo (art. 20 do CP), já que, se a avaliação sobre os fatos e sobre a prova apresentada for viciada, o agente teria percepção equivocada quanto aos elementos objetivos do tipo que define o abuso de autoridade.
Conclusões
A leitura do artigo primeiro da Lei 13.869/19 indica que todas as condutas ali descritas só constituirão crime de autoridade acaso tenham como propósito “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1º, §1º). Trata-se, na perspectiva dogmática, do que já se convencionou denominar “elemento subjetivo especial do tipo”.
Não bastasse isso, a divergência na interpretação da legislação e a divergência na avaliação dos fatos e provas para tomada de decisão confi- guram causa excludente de tipicidade expressa (art. 1º, §2º). Tal cláusula seria desnecessária, uma vez que aquele que atua acreditando cumprir fielmente a letra da lei (seja por sua interpretação, ou pela avaliação que faz dos fatos e das provas) já não poderia responder pelo crime, por flagrante ausência de dolo e inexistência da figura típica na modalidade culposa. De qualquer forma, o legislador optou por expressamente afastar as críticas formuladas por parte da comunidade jurídica, de que poderia
temas de Direito Administrativo, Penal, Tributário e Urbanístico: estudos em homenagem ao Professor Paulo de Barros Carvalho. Coordenação: LINS, Robson Maia. Editora Jam Jurídica: Salvador, 2014. Pág. 245.
25 Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica e outros. 2ª edição. São Paulo: RT, 2006, p. 58.
haver punição ao exercício jurisdicional interpretativo que desafiasse os interesses de alguns.
Assim, dois argumentos foram construídos para bloquear a imputação penal dos agentes: ou a conduta não será típica porque o agente não foi movido pelos objetivos descritos (quais sejam, de prejudicar alguém, de beneficiar-se ou favorecer terceiro, de praticar o ato por mero capricho ou de satisfação pessoal), ou não será típica porque a conduta se manteve dentro dos limites da divergência interpretativa ou valorativa permitida. Ocorre que, na prática, tais limitações podem obstruir o intento punitivo legítimo sobre agentes públicos que praticam atos verdadeiramente abusivos. A consciência exigida para a caracterização da tipicidade é mais facilmente demonstrável quando patente a irrazoabilidade da conduta, como, por exemplo, um guarda prisional que pratica atos sexuais com alguém que se encontra custodiado e com reduzida capacidade de defesa. Fora os casos nos quais salta aos olhos a motivação desviada, as dificulda- des de comprovação e as dúvidas quanto ao conhecimento implícito do agente (se agiu ou não imbuído dos sentimentos previstos no §1º) acabaria implicando na aplicação do in dubio pro reo.
A teoria da co-consciência imanente à ação é uma alterativa doutrinária válida para se garantir a aplicação da justiça penal aos atos abusi- vos nos casos em que o tipo penal for repleto de elementos (normati- vos, descritivos ou pessoais) que se refiram diretamente à juízos de valor profundamente antiéticos relacionados à má prática funcional. Embora possa haver grande dificuldade em demonstrar de maneira cabal que o agente teve a consciência refletida (representação) sobre todo o compor- tamento típico abstrato, a existência de elementos do tipo ligados à juízos de má conduta internalizados pelo agente pode servir como indicativo do intuito de prejudicar alguém, beneficiar-se ou beneficiar a terceiro, ou do agir por mero capricho ou satisfação pessoal, na forma do §1º do artigo 1º da lei. A solução não significa o afastamento da necessidade de verificação do tipo subjetivo, mas apenas uma maior ênfase ao elemento intelec- tual do dolo (consciência), dando-se menor importância à constatação do elemento volitivo (vontade), esse último de mais difícil comprovação, no nosso entender. Em outras palavras, haveria casos em que o elemento consciência seria tão forte que tornaria prescindível a comprovação do ele- mento vontade, como no exemplo em que, verificadas as circunstâncias do caso e a experiência do agente, é facilmente perceptível que o ato praticado contraria descaradamente valores éticos e jurídicos atinentes à sua função. Aqui caberia o exemplo mencionado no texto, de um policial que pratica atos sexuais com uma custodiada.
Ainda, para averiguar se houve a “divergência na interpretação” e assim aplicar a excludente do §2º, pode-se lançar mão da análise da razoabilidade dos atos. Acaso o ato tido por abusivo fuja do padrão normal de discordância interpretativa, a conduta será penalmente relevante, como no caso em que o juiz que decreta a prisão como exigência para processamento do recurso da defesa, sem fazer qualquer referência aos requisitos do art. 312 do CPP. A dificuldade de comprovação dessas situações, por ausência de densidade na descrição das hipóteses legais representará inegável dificuldade na aplicação da lei, mormente porque cada operador do direito, na avaliação que faz dos fatos e das provas, leva em conta seu sistema de referência individual, ou seja, sua percepção de vida e experiências, as quais interferem na sua forma de avaliar fatos, provas e sua própria conduta. Espera-se, então, que os §§ 1º e 2º do art. 1º, quando começarem a ser aplicados pelo Judiciário, não acabem se tornando obstáculos instransponíveis à punição dos atos abusivos.
Referências
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