Autor: Maria Carolina de Melo Amorim
Advogada criminalista em Recife (PE)
Com a criminalização das condutas antes relacionadas apenas às infrações tributárias, muito se passou a discutir acerca da ingerência do Direito Penal no Direito Tributário e vice-versa. Como ramos do Direito Público, não há dúvidas de que (Direito Penal e Direito Tributário) sempre se relacionaram. No entanto, com o advento de sucessivas leis tributárias que trazem, em seu bojo, normas de caráter penal (inclusive com previsão de extinção de punibilidade), coube aos tribunais definir, com maior rigor, o alcance e critério de cada ramo do Direito.
Dessa forma, embora as instâncias sejam independentes, tem-se que a ação penal, hoje, deve aguardar o término do procedimento administrativo tributário para iniciar-se (orientação do STF a partir do julgamento do HC nº 81.611/DF), entendimento que subordinou a ocorrência do fato típico à decisão da autoridade fiscal. A conduta tributária do parcelamento ou pagamento do débito também gera efeitos na esfera penal, desta feita por força da Lei nº 10.684/03 (artigo 9º), suspendendo a pretensão punitiva ou extinguindo a punibilidade do agente.
Com efeito, além das questões já suscitadas e exaustivamente discutidas pelos profissionais do Direito Penal, outras também merecem destaque, a exemplo da obrigatoriedade de fornecimento de documentos e informações relacionadas às fiscalizações tributárias. É que, ao tempo em que a norma tributária exige a apresentação das informações ao fisco durante o exercício da fiscalização tributária — e dessas informações, como se sabe, podem surgir provas não apenas do ilícito tributário, mas também do ilícito penal tributário —, o Direito Penal veda a obrigatoriedade da auto-incriminação do agente, hipótese consolidada, inclusive, através de dispositivo constitucional penal (art. 5º, LXIII, da CF/88).
Ora, quando a fiscalização tributária tornou-se a “apuração prévia” de condutas criminosas, denotando a possível ocorrência de crimes tributários para o posterior envio à autoridade ministerial, a obrigatoriedade de apresentação dos documentos fiscais pelo contribuinte passou a afrontar o princípio penal de que ninguém é obrigado a apresentar prova contra si mesmo.
E, ainda, como se não bastasse, alguns operadores do Direito vêm fazendo a inconstitucional interpretação do art. 1º, I da Lei 8.137/90, erigindo à categoria de crime uma ação justificada e respaldada pela Constituição Federal.
O inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, ao dispor que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”, prevê o princípio da vedação à auto-incriminação, regra derivada daquela segundo a qual ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo. É o chamado “direito ao silêncio”, que revogou a parte final do artigo 186, do Código de Processo Penal(1).
Segundo tal garantia, nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a acusar a si próprio), o poder público não pode interpretar o silêncio como prova ou indício da culpabilidade do agente, tampouco forçar o acusado a responder indagações ou apresentar documentos em seu desfavor, dispondo do réu como meio de prova. Baseado na presunção de inocência, proclamada no artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, conclui-se que, ante o silêncio do réu, não pode ser deduzida nenhuma conclusão que afronte o princípio in dubio pro reo. Sobre o assunto, a professora Ada Pellegrini(2) comenta: “O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar ou até mentir”.
Não obstante o artigo constitucional, em sua expressão literal, refira-se ao preso, sua dicção tem alcance absoluto para atingir toda e qualquer pessoa sujeita a um procedimento criminal, seja como réu, indiciado ou investigado, não importando, ainda, a fase processual em que se encontre a investigação criminal. Essa é a orientação prevalente na doutrina(3) e jurisprudência(4) brasileiras.
O STF, no exercício da guarda e defesa da Constituição Federal, tem estendido a aplicação do direito ao silêncio àquelas pessoas que, na qualidade de testemunhas, se vejam impelidas a responder indagações que possam resultar em auto-incriminação, tornando-as futuras investigadas em procedimentos criminais. Nesse sentido, algumas liminares foram concedidas em HC’s preventivos para impedir a prisão (por crime de falso testemunho) das pessoas ouvidas como testemunhas nas Comissões Parlamentares de Inquéritos, mas que podem vir a ostentar, pela natureza do questionário a elas endereçado, a condição de acusados(5), restando definida, pois, que a condição de testemunha não afasta a garantia constitucional do direito ao silêncio. Muito embora tal concessão venha causando revolta entre os parlamentares e críticas por parte da imprensa, ela é a mais fiel expressão da norma constitucional, garantidora ao cidadão da possibilidade de calar ou mentir para favorecer-se, vedando a obrigatoriedade da auto-incriminação.
A decisão acima comentada suscita outras conclusões. É certo que o cidadão, quando na condição de testemunha perante o Judiciário, Legislativo ou em Processo Administrativo Disciplinar, presta um serviço público de auxílio à Justiça. Se, mesmo nessa condição — comprometendo-se com a verdade e figurando em outra posição que não a de acusado — também lhe é assegurada a garantia constitucional do silêncio para protegê-lo da auto-incriminação, o que dizer do contribuinte que está sendo submetido ao exercício fiscalizatório do Estado, exercício esse que redundará, se for o caso, em procedimento administrativo tributário e inquérito policial para apuração de crimes tributários em seu desfavor?
Esclareça-se que a prerrogativa da não auto-incriminação é um direito do cidadão, e não apenas do acusado em processo penal, tampouco somente do custodiado. Nesse diapasão, seu exercício também é estendido ao contribuinte, em relação à apresentação de informações a ele prejudiciais. Comentando a discussão ora em enfoque, o professor Ives Gandra Martins aduz que, pretendendo o agente fiscal obter informações que possam implicar em crime tributário, tem o contribuinte o direito de ficar calado e, portanto, não prestar qualquer colaboração(6).
Acrescente-se aos argumentos acima defendidos o fato de que a invocação da norma constitucional não pode redundar, por completa incongruência, na incidência em conduta típica da legislação infraconstitucional (a exemplo do art. 1º, I da Lei nº 8.137/90).
Na verdade, observando de forma minuciosa o tipo do artigo 1º, I, da lei de crimes tributários, e analisando a sua hipótese de incidência, tem-se que a simples conduta de “omitir informações da autoridade fazendária” (inciso I) não é suficiente para consumar o crime: há a necessidade de que a omissão tenha sido a forma encontrada para suprimir ou reduzir o tributo.
A questão ganha relevo e merece destaque a discussão, uma vez que a má interpretação do mencionado inciso I tem impulsionado os representantes do Ministério Público a acrescentá-lo no rol acusatório da denúncia por sonegação de tributos, ante a não colaboração do contribuinte com o fisco. Ora, o agente, ao invocar o inciso LXIII do artigo 5º da CF/88, não o faz para reduzir ou suprimir tributo, já que a fiscalização em exercício trata de períodos fiscais anteriores, ou seja, a conduta omissiva perante o fisco tem o condão de proteger a já realizada redução ou supressão de valores. A hipótese normativa penal, então, em tese, já ocorrera em momento anterior à fiscalização, e a negativa em colaborar com a fiscalização não se convalida em “nova” supressão de tributos, mas, quem sabe, resguardo das possíveis provas incriminatórias de supressão já anteriormente ocorrida, utilizando-se de permissivo constitucional.
No mesmo sentido, e para conciliar o dever de informar ao fisco e o direito ao silêncio, o professor Hugo de Brito Machado preferiu desposar do entendimento de que as informações cuja apresentação se faça obrigatória (e cuja negativa se configure o crime do artigo 1º, I da Lei 8.137/90) seriam aquelas necessárias tão-somente ao lançamento regular do tributo, não quaisquer outras necessárias ao exercício da fiscalização tributária. Para o autor, “o dever de informar precede a configuração do crime contra a ordem tributária. Cometido este, seu autor não tem o dever de prestar informação alguma, útil para a comprovação daquele cometimento, que configuraria auto incriminação”(7).
Não obstante, voltando-se à legislação tributária, tem-se que os artigos 195 e 113, § 2º, do CTN determinam ao contribuinte o fornecimento de informações à autoridade fiscal, como obrigação acessória que pode vir a tornar-se (caso inadimplida) obrigação principal tributária relacionada à penalidade pecuniária.
No entanto, como é sabido, as normas constitucionais prevalecem sobre as demais, porque hierarquicamente superiores. Dessa forma, a legislação tributária reguladora da apresentação de documentos à fiscalização só é válida nos limites estabelecidos pela Carta de 1988.
Dessa forma, entendemos que qualquer interpretação das normas tributárias a admitir a obrigatoriedade de prestar informações ao fisco quanto a elementos de auto-incriminação do agente deverá ser encarada como óbice ao exercício do preceito constitucional, inclusive a que prevê o arbitramento de multa ante o descumprimento da aludida obrigação acessória. Ainda, o uso da prerrogativa constitucional, por si, não autoriza a interpretação pela incidência em outra norma penal. Se assim fosse, estaria também essa segunda norma (no caso, o inciso I do art. 1º da Lei 8.137/90) eivada de inconstitucionalidade.
Para resguardar a necessária apuração dos fatos geradores e o direito de fiscalizar, tem-se que omissão do contribuinte em apresentar a documentação fiscal permite ao fisco o arbitramento de valores, preços de bens ou serviços e presunções de operações de incidência de tributo, desde que informações nesse sentido tenham sido obtidas por outros meios de apuração (a exemplo da movimentação de estoques, registros em máquina de combustíveis, registros financeiros etc.).
Quanto à esfera penal, o descumprimento da obrigação acessória de apresentação de documentos e informações fiscais não pode ser tido como indício da prática da sonegação fiscal, muito menos ensejar a propositura de ação penal com arrimo no inciso I do artigo 1º da Lei 8137/90, em razão do comentado direito ao silêncio e da proibição de que esse silêncio seja interpretado em prejuízo do réu.
Notas
(1) Redação antiga: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa” Art. 186 CPP.
(2) GRINOVER, Ada Pellegrini. “Interrogatório do Réu e Direito ao Silêncio”. In: Ciência Penal I, 15-31, Ed. Saraiva.
(3) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 15ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, vol. 03, p. 239.
(4) STF, HC 68.929 (DJU 28.08.1992, p. 13.453), sob a relatoria do min. Celso de Mello: “Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhes são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. (…)”
(5) O Supremo decidiu, nos autos do Habeas Corpus 88.703/MT, pela concessão de liminar para que o paciente tenha o direito de permanecer em silêncio durante depoimento como testemunha perante a CPI dos Bingos, em Cuiabá (MT). Nesse julgamento, o ministro Cezar Peluso afirmou que a garantia constitucional contra auto-incriminação se estende a todas as pessoas sujeitas aos poderes de instrução [das comissões de inquérito, naquele caso], ressalvando que, com relação aos fatos que não impliquem auto-incriminação, persiste o dever de prestar informações.
(6) MARTINS, Ives Gandra da Silva. Crimes Contra a Ordem Tributária, São Paulo: RT, 2002, p. 44.
(7) MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária, São Paulo: RT, 2002, p. 129.
Maria Carolina de Melo Amorim
Advogada criminalista em Recife (PE)
Fonte: https://www.ibccrim.org.br