Por: Maria Carolina de Melo Amorim¹
FADIC
Filipe Oliveira de Melo²
Universidade de Lisboa
Resumo
O objetivo deste artigo é identificar e questionar o uso de normas extrapenais para fundamentar a imputação penal pelo crime de gestão temerária, sobretudo no momento de atribuir a prática de riscos proibidos ao agente econômico no exercício de sua atividade profissional.
Palavras-chaves
Gestão temerária. Princípio da Legalidade. Normas extrapenais.
Abstract
The aim of this article is to identify and question the use of extracriminal norms to support criminal imputation for the crime of reckless management, especially when attributing the practice of prohibited risks to the economic agent in the exercise of his professional activity.
Keywords
Reckless management. Principle of Legality. Extra-criminal standards.
Introdução
Entre 10 a 14 de agosto de 2020, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal realizou a I Jornada de Direito e Processo Penal e, após o evento, aprovou trinta e dois enunciados acerca de temas jurídico penais complexos e cuja aplicação eram motivo de divergência entre os órgãos do Poder Judiciário. Entre os enunciados aprovados está o de número 23, que propõe critérios e diretrizes para a configuração do crime de gestão temerária:
“O crime de gestão temerária de instituição financeira exige a demonstração da violação das regras e parâmetros objetivos de gerenciamento de riscos e limites operacionais na administração, intermediação e aplicação de recursos de terceiros, instituídos pelas autoridades de regulação do sistema financeiro nacional”
¹ Doutora em Processo Penal pela PUC/SP, Mestre em Direito Penal pela UFPE. Professora do Programa de Pós Graduação (mestrado) da FADIC – Faculdade Damas da Instrução Cristã. Diretora Nacional do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (biênio 2021-2022). Conselheira Estadual da OAB/PE (triênio 2019-2021). Advogada criminalista.
² Mestrando em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa/PT, Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/PT e Especialista em Direito Penal e Medicina pela Universidade de Lisboa/PT.
O enunciado nº 23 não possui efeito vinculativo, e nem poderia ter, mas exsurge como diretriz interpretativa aos membros do Poder Judiciário, uma vez que nasce em meio aos debates do principal círculo acadêmico da justiça federal. De certo, o enunciado aponta para exigências mínimas que o julgador deverá considerar antes de impor eventual condenação pelo tipo de gestão temerária, a exemplo da efetiva violação das regras emitidas pelas autoridades regulatórias do sistema financeiro nacional.
O tipo penal de gestão temerária é recorrentemente debatido e criticado pelos penalistas, sobretudo porque a conduta abstrata proibida é imprecisa e no tipo não constam outros critérios de avaliação, como elementos objetivos mais densos para além da conduta definida como “temerária”. Não bastasse isso, do tipo não se extraem circunstâncias agravantes ou atenuantes das quais se pudessem extrair exemplos de comportamentos que extrapolassem os limites do risco permitido e classificassem o ato como “temerário”
No campo econômico financeiro, o caráter temerário dos comportamentos dos agentes econômicos é de difícil definição, uma vez que a ideia de risco, per si, é ínsita à atuação de instituições financeiras no mercado econômico. Por outro lado, o comportamento temerário independe de uma conduta comissiva: a perda de oportunidades no mercado financeiro também pode se qualificar como um agir temerário, tendo em conta que a finalidade da atividade desenvolvida pelas instituições financeiras é auferir lucros, aumentar a rentabilidade dos investimentos e reduzir perdas em cenários econômicos pouco favoráveis. A assunção de maiores riscos está intimamente associada ao ganho de maior rentabilidade e esse é objetivo declarado das instituições financeiras;
enquanto condutas conservadoras têm lugar em contextos nos quais a relação “risco x retorno” é desfavorável.
Assim, o conteúdo do enunciado nº 23 fornece uma base mínima de fontes normativas na qual os julgadores poderão apoiar suas decisões, indicando que as normas administrativas exaradas pelas autoridades de regulação do sistema financeiro nacional são um importante padrão normativo para a avaliação da relevância penal da conduta.
Todavia, o conteúdo do enunciado induz o aplicador do Direito a um perigoso caminho que o leva a uma falsa equiparação entre a violação das normas administrativas de cunho econômico financeiro à violação da norma penal do tipo de gestão temerária, i.e., violar a norma regulatória do sistema financeiro se converteria automaticamente em violação da norma penal, de modo que ambas as normas parecem guardar uma relação de simetria valorativa. O injusto penal estaria, nesse raciocínio, perfeitamente acabado, diante da comprovação de que o agente econômico violou uma ou mais normas administrativas do sistema financeiro nacional.
A suposta simetria valorativa entre os injustos é um erro grave, na medida em que ignora construções doutrinárias essenciais, como os princípios da ultima ratio e da necessidade do direito penal. Se o crime de gestão temerária for interpretado, tão somente, à luz do seu enunciado legal, estar-se-ia reduzindo o crime ao ilícito administrativo, igualando as categorias dogmáticas de cada um dos “ramos” do Direito em um processo intitulado de “administrativização do direito penal”, que corresponde a uma série de tentativas de nivelamentos entre o direito administrativo e o direito penal, sobretudo na utilização desse último como meio para a gestão e prevenção de riscos em vez de instrumento para a proteção final e mais drástica dos bens jurídicos fundamentais. Trata-se de uma mudança no paradigma do direito penal clássico3.
Ocorre que a “administrativização do direito penal” é apenas o diagnóstico de um fenômeno. Na perspectiva aqui defendida, parece mais grave e insidiosa a articulação acrítica e automática entre a imputação penal e as normas extrapenais, categoria esta na qual também se incluem
3 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 145 e ss.
as normas extrajurídicas e autorregulatórias. Essa articulação acrítica permite que a ideia sobre os limites do risco permitido ou do risco proibido se ancore em normas de baixa qualidade democrática, como pode ser o caso das normas autorregulatórias ou deontológicas, ou em normas extrapenais que, por si sós, não satisfazem o desvalor do comportamento exigido pelo injusto penal e ainda encerram violações aos princípios da taxatividade, da publicidade e da legalidade penal estrita.
Não se trata, portanto, de questionar apenas a falta de densidade normativa e/ou objetiva, a qual frequentemente é levada a debate frente ao princípio da legalidade, do tipo penal de gestão temerária, mas de compreender que, no caso concreto, a imprecisão e falta de concretude do tipo abrem espaço para o ingresso acrítico de normas extrapenais na formulação do injusto penal, ignorando que esse último é formado por categorias muito mais amplas e complexas do que a mera violação de uma norma administrativa ou autorregulatória. Na gestão temerária, essa articulação acrítica é enfatizada pelo contexto fluido e extremamente volátil no qual condutas enquadráveis no tipo em apreço podem vir a ocorrer, rememorando que a assunção do risco, em alguns casos, é ínsita e estimulada na gestão de instituições financeiras.
A articulação acrítica entre a imputação penal e as normas extrapenais na análise do tipo de gestão temerária é facilmente notada nos precedentes exarados pelos tribunais superiores, que, via de regra, exigem apenas que “o agente transgrida voluntariamente as normas regentes da sua condição de administrador da instituição financeira”4 e já se firmaram no sentido de que o crime estaria caracterizado quando os agentes econômicos “deixaram de cumprir deveres legais e estatutários de exercer minuciosa e assídua fiscalização sobre a administração da cooperativa”5. Há, então, a possibilidade de ocorrência de uma falsa e perigosa equiparação entre a violação das normas de natureza econômica ou administrativa e a norma penal, reduzindo a última à mera infração de regras técnicas, autorregulatórias ou administrativas.
4 STJ. REsp nº 1.613.260/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016.
5 STJ. HC nº 469.631/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 09.10.2018, DJe 17/10/2018.
Compreendido o problema apresentado, impende descrever a forma como o presente artigo se estrutura. De início, será feito um apanhado sobre os principais questionamentos lançados pela doutrina ao tipo penal de gestão temerária e como a jurisprudência vem tratando tais questionamentos sobre o tipo penal. Em segundo, serão expostas as principais críticas e propostas a respeito da articulação entre normas e regras extrapenais e o juízo de imputação penal, notadamente no direito penal econômico. Em terceiro, serão apresentadas as conclusões obtidas a partir do cotejo entre tais propostas e alternativas, bem como possíveis soluções para o problema levantado.
1. Apontamentos sobre o crime de gestão temerária
Os autores de direito penal comumente denunciam a violação aos princípios da legalidade estrita, da taxatividade e da segurança jurídica diante da formulação atual do tipo penal de gestão temerária, concluindo pela sua inconstitucionalidade. Por outro lado, os tribunais superiores se debruçaram sobre o tema e ratificaram que a “indeterminação do tipo penal previsto no art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86 não se mostra em grau suficiente para configurar ofensa ao princípio constitucional da legalidade”6. Considerando a definição trilhada pelo próprio STF, recorrer à novas críticas a respeito da inconstitucionalidade do tipo de gestão temerária seria despiciendo, tendo em vista o grande volume de trabalhos acadêmicos nesse sentido.
A indagação aqui se volta à caracterização da conduta temerária, a ser acolhida pela jurisprudência e doutrina brasileira, de modo a aclarar o condicionamento da consumação do tipo às normas extrapenais e até mesmo extrajurídicas. De fato, o enunciado nº 23 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal já indica tal condicionamento, mas a verdade é que, nos casos concretos, os tribunais têm imposto um nível de criticidade mais frouxo do que a sugestão proposta pelo referido centro de estudos. A conferir, um caso exemplificativo da linha seguida pelo Superior Tribunal de Justiça.
6 STF. ARE 953.446 AgR, Rel. Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, DJe 24/08/2018.
1.1 Recurso Especial nº 1.613.260-SP: Caso concreto
O precedente a ser apresentado foi fixado no bojo do Recurso Especial nº 1.613.260 de São Paulo/SP, através do qual o recorrente buscava a reforma do acórdão exarado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que manteve a condenação do recorrente pela prática de crimes contra o sistema financeiro nacional, dentre os quais se destaca, para fins deste artigo, o delito de gestão temerária. A decisão condenatória e o acórdão confirmatório teriam tratado o crime de gestão temerária como culposo, na medida em que a condenação “se baseou numa suposta atuação negocial arriscada e imprudente, avessa à cautela e prudência mínimas exigíveis de gestores de instituições financeiras”7. Esse raciocínio demonstra como o operador do direito penal traduz as violações às regras extrajurídicas exigidas aos gestores de instituições financeiras, sob a perspectiva da imputação penal em discussão.
Ao apreciar a questão, o órgão julgador entendeu que a incidência da norma penal para a gestão temerária só teria lugar quando a conduta praticada extrapolasse os limites do risco permitido no âmbito da atividade econômica, de modo que “o tipo penal de gestão temerária pressupõe a violação de deveres extrapenais”. Em continuação, explicou-se que os deveres extrapenais seriam impostos por normas jurídicas diversas, razão pela qual o órgão julgador assumiu que “se é verdade que o risco é ínsito à atividade das instituições financeiras, os seus limites são estabelecidos normativamente”8.
Nesse sentido, o julgador considerou que a formulação normativa prescrita na Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976) a respeito da diligência exigida aos administradores de sociedades anônimas (“o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo o homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”) seria muito genérica para dela se deduzir a infração dos limites do risco permitido,
7 STJ. REsp nº 1.613.260/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016, folha 13 do voto da relatora.
8 Ibid., p. 157 STJ. REsp nº 1.613.260/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016, folha 13 do voto da relatora.
socorrendo-se às regras específicas de autoridades regulatórias (como a CVM ou o Banco Central) “para perquirir se os administradores das instituições financeiras superaram o risco admitido pelas normas pressupostas pelo tipo penal”9.
Depreende-se, portanto, que as regras específicas emitidas pelas autoridades regulatórias seriam suficientes para apurar a existência do risco penalmente relevante. Esse entendimento fica ainda mais claro quando o julgador reafirma a materialidade delitiva do crime de gestão temerária no caso concreto pela “violação intencional das regras pertinentes à administração da instituição financeira”10.
De certo, a atuação do agente econômico dentro dos limites fixados pelas normas administrativas aplicáveis ao âmbito econômico financeiro impede que a essa mesma atuação seja atribuída uma relevância penal. O princípio da unidade do ordenamento jurídico veda que uma mesma conduta seja considera lícita por um ramo do direito, mas ilícita por outro11. Por essa razão, a conduta alinhada às normas que regulam o sistema financeiro nacional são penalmente irrelevantes, por faltar-lhe a criação de um risco desaprovado. Nesse ponto, o precedente citado parece não merecer reparos.
No entanto, o raciocínio acima deve ser aplicado com cautela, sobretudo porque induz à conclusão que toda violação de norma administrativa de cunho econômico financeiro e emitidas por autoridades regulatórias deságua, impreterivelmente, na prática de ilícito penal. Tal raciocínio obriga uma falsa equiparação entre infração de normas qualitativamente distintas, como é o caso da norma administrativa e o da norma penal. No precedente citado, tal equiparação parece ter ocorrido, como se observa na seguinte passagem do voto do órgão julgador:
“São as primeiras diretrizes a indicar o que é uma gestão responsável – e, portanto, não temerária – de uma sociedade qualquer. Mais do que cuidado e diligência, quem lida profissionalmente com bens, valores ou dinheiro alheio tem de possuir o conhecimento técnico adequado.
Tais normas, porém, são ainda muito genéricas para serem utilizadas como critério de determinação do risco proibido. É preciso examinar as regras específicas, veiculadas por órgãos como o Conselho Monetário
9 Ibid., p. 15
10 Ibid., p. 16
11 COSTA, José de Faria. Direito Penal. Imprensa Nacional: Lisboa, 2017, p. 318
Nacional, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, para perquirir se os administradores das instituições financeiras superaram o risco admitido pelas normas pressupostas pelo tipo penal”12 (grifou-se)
A fórmula clássica da imputação penal objetiva (em resumo: produção de risco desaprovado + conexão entre o risco e o resultado) não significa que a produção de qualquer risco juridicamente desaprovado deve, necessariamente, converter-se em risco jurídico penal relevante. Se esse fosse o caso, não haveria diferença qualitativa entre a norma cível ou administrativa e a norma penal, bem como toda transgressão normativa seria automaticamente enquadrada como um ilícito global, suscetível de punição, desde logo, por todos os ramos do Direito, sem ressalvas.
A identidade qualitativa entre as infrações normativas é rechaçada pela simples análise da sanção atribuída por cada âmbito do Direito às respectivas transgressões. Nesse ponto, o princípio da proporcionalidade sinaliza que se a sanção corporal é mais drástica entre aquelas disponíveis em todo o sistema jurídico normativo (pena, multa, restrições de direitos, resoluções contratuais), trata-se de consequência lógica concluir que o comportamento juridicamente relevante que originou a respectiva sanção também possui uma diferença qualitativa, portanto, de valor13. Portanto, é mal colocado atribuir, automaticamente, um valor tão alto à violação da norma administrativa – apenas pela violação, sem mais – de modo a se tornar desnecessário qualquer tentativa de enquadramento qualitativo entre o comportamento e a norma penal. A violação da norma extrapenal para fins de imputação penal deve servir apenas como parâmetro indiciário da prática do tipo penal correspondente.
Compartilhando desse raciocínio, André Luís Callegari entendeu que a violação às normas técnicas ou formal das regulamentações setoriais serviriam apenas como um “indicador de uma eventual desaprovação do risco criado”14, i.e., a infração das normas administrativas ou extrapenais
12 Ibid., p. 15
13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral: Tomo I. 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 12812 Ibid., p. 15
14 CALLEGARI, André Luís. Gestão Temerária e o Risco Permitido no Direito Penal. In: Revista dos Tribunais, Vol. 837/2005, Jul/2005, p. 409-416
exerceria uma função indiciária da prática do delito de gestão temerária. Em conclusão, Callegari aduziu:
“Consequentemente, a violação formal ou literal cumprimento de uma regulamentação serve tão somente como indicador de uma eventual desaprovação do risco criado, mas de nenhum modo deve ser considerado como requisito suficiente para sua demonstração, pois a desaprovação de um risco só pode ser categoricamente afirmada quando sobre a base desse fato indicador se proceda a análise de cada situação concreta.
Assim, voltando ao caso acima descrito, não será a adoção de determinadas medidas que foram consideradas temerárias pelo órgão fiscalizador que indicarão a existência de um risco juridicamente desaprovado, mas, ao contrário, a concreta situação realizada, ou seja, se as medidas adotadas de fato foram arriscaras (temerárias) ou, melhoraram a situação anteriormente existente, ou, ainda, se eram utilizadas por outras instituições no mercado”15
Assim, a imputação penal exigiria muito mais do que a simples infração da norma extrapenal, e ao operador do Direito cabe avaliar a avaliação da situação concreta na prática do fato imputado.
No entanto, o possível critério da “avaliação da situação concreta” é apenas um passo para além da corrente jurisprudencial dominante, dado que o julgamento do fato concreto em todas as suas circunstâncias é elementar para qualquer juízo de imputação penal juridicamente válido e ancorado no arcabouço constitucional. Nessa linha, cabe arguir se a própria aceitação de que normas extrajurídicas possam complementar normas penais não é, desde logo, fonte de problemas dogmáticos incontornáveis, notadamente em face de um direito penal assentado no princípio da legalidade. Apresenta-se como essencial a fixação de critérios ou diretrizes mais firmes quanto a absorção das normas extrapenais que fixem parâmetros de riscos permitidos, em especial aquelas de natureza administrativa regulamentar, pela norma penal. A doutrina internacional tem se debruçado sobre esse tema e chegado ou a conclusões de rechaço total à referida absorção/articulação; ou proposto alternativas para viabilizar tal articulação entre normas extrapenais e a imputação penal.
2. Análise teórica
15 Ibidem.
3.1. As regras técnicas e a imputação penal: a crítica de Schunemann
Em 1987, no artigo “Las regras de la técnica en derecho penal”, Bernd Schunemann parte da constatação inicial de que condutas imprudentes causadoras de grandes desastres, como o caso do acidente nuclear de Chernobyl, estariam à margem do direito penal, escapando de punições. O ponto de partida eleito por Schunemann visa lançar uma provocação quanto a capacidade do direito penal em garantir a existência da vida humana16. Ele considera que o estudo entre a técnica moderna e o direito penal é essencial, sobretudo quando se tem em conta que os demais ramos do direito, a exemplo do direito administrativo, estariam em um estágio avançado de articulação com regras técnicas ou normas extrajurídicas, o que, pela absorção do conhecimento especializado e técnico, permitiria ao Direito oferecer um maior nível de proteção aos bens jurídicos tutelados17.
Na perspectiva defendida por Schunemann, as regras técnicas e a norma penal se relacionariam sob o conceito clássico das lei penais em branco (carecedoras de complementação ou de delimitação por outras fontes do Direito). Contudo, Schunemann rechaça esse conceito clássico, visto que, em sua perspectiva, tal conceito não abarcaria a remessa expressa ou tácita da função de complementação para o setor privado, a qual, segundo ele, é uma forma extremamente comum de remessa normativa18.
Schunemann é crítico à forma através da qual as leis penais em branco são complementadas ou definidas, assim como os agentes ou órgãos autorizados a realizar a função de complementação normativa. Sua crítica se estrutura, resumidamente, na violação (I) da distribuição de competências (relacionada à divisão dos poderes); e (II) do princípio da legalidade penal. Tais violações abririam outras ordens de questionamentos.
16 SCHUNEMANN, Bernd. Las reglas de la técnica en derecho penal. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo 47, Fasc/Mês 3, 1994, p. 307-342
17 Ibidem, p. 308-30916 SCHUNEMANN, Bernd. Las reglas de la técnica en derecho penal. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo 47, Fasc/Mês 3, 1994, p. 307-342
18 Ibidem, p. 311-312
Quanto aos problemas associados à divisão de competência (a), Schunemann afirma que os subproblemas correspondentes têm a ver com a violação ao princípio democrático (1.a), pois haveria casos em que a complementação normativa seria realizada por um setor ou instância não estatal; e com a violação ao princípio da separação dos poderes (1.b), já que a complementação normativa poderia ser realizada, por exemplo, pelo Poder Executivo, que não possuiria tal competência, ou até mesmo por outros entes da federação, com os municípios ou Estados19.
Quanto aos problemas associados ao princípio da legalidade penal (2), Schunemann aduz que a função de complementação poderá ferir o dever de publicação dos instrumentos normativos (2.a), na medida em que o conteúdo normativo da complementação não seria publicado do mesmo modo que as leis, o que poderia afetar o conhecimento pessoal do agente submetido ao Direito (2.b) sobre a matéria complementada, e levantaria problemas quanto aos elementos subjetivos do injusto e da culpa20. Diante de tais questões (1 e 2), e seus correspondentes desmembramentos (1.a; 1.b; 2.a; e 2.b), Schunemann conclui:
“o conceito de lei penal em branco nas disposições que remetem a um complementação mediante fontes jurídicas (é dizer, estatais), não pode se apresentar como materialmente justificada nem à luz do princípio consistente em que um órgão legislativo não pode ceder sua competência de forma aberta nem encoberta a uma instância incompetente, nem desde a perspectiva da concreção da Lei, entendida objetivamente ou subjetivamente como segurança jurídica para o cidadão particular”21.
Para Schunemann, os problemas (1 e 2) e os subproblemas (1.a, 1.b,
2.a e 2.b) referidos se materializam em torno de sete alternativas de articulação entre as normas penal e técnica, quais sejam: 1) o surgimento de um tipo penal dinâmico, ou seja, que se alteraria conforme as mudanças na norma extrapenal para a qual a norma penal faz referência; 2) na criação de um tipo penal em branco, porém estático, i.e., quando a norma penal se refere a uma norma extrapenal específica, sem que ela se altere; 3) numa mera exigência de que o juiz considere a violação da norma extrapenal como tradução direta da infração do dever de cuidado, ou seja, a infração
19 Ibidem, p. 313
20 Ibidem, p. 313
21 Ibidem, p. 313
da regra técnica seria sinônimo da infração do dever de cuidado; 4) a norma extrapenal se converteria como complemento à linguagem do operador do direito, ou seja, tornar-se-ia “dados técnicos avalorativos”; 5) a norma extrapenal enquanto revelação das leis causais reconhecidamente válidas no âmbito técnico, i.e., os deveres de precaução no âmbito técnico de determinada atividade seriam traduzidos como as medidas idôneas e necessárias para evitar os cursos lesivos possíveis; 6) no uso das regras técnicas como valoração da prova; e 7) pensar nas regras técnicas como informes periciais antecipados para os quais os juízes pudessem recorrer por sua evidência e falta de outros informes que o refutem22.
Após aprofundamento crítico, Schunemann conclui que a) remeter a norma penal (remissão dinâmica) às instâncias privadas seria o mesmo que deixar as ovelhas aos cuidados dos lobos, na medida em que a definição do risco tolerável ficaria a cargo do agente sobre o qual a norma penal se destinaria. Em outras palavras, estar-se-ia ignorando o interesse da coletividade em detrimento de interesses privados23; b) mesmo a remissão legal estática, apresentaria problemas relacionados ao aspecto subjetivo da norma penal pela falta de conhecimento do agente a respeito da proibição24; c) seria inadmissível o uso das regras técnicas como uma linguagem profissional a ser fielmente seguida, posto que isso limitaria a atividade decisória do magistrado, além do que a tarefa de interpretar a lei penal acabaria nas mãos daqueles sujeitos ocupantes de posição profissional ou setorial de destaque25; d) tampouco seria possível compreender as regras técnicas como constatação das leis causais empíricas, pois isto também cairia no erro de outorgar aos setores privados um poder de definir, afinal, o comportamento penalmente relevante.
Em conclusão, Schunemann rejeita a articulação vinculante entre a norma penal e as regras técnicas, sobretudo aquelas de natureza autorregulatória, considerando que tal vinculação representa violação ao princípio democrático, ao mandado de determinação legal e de publicação.
22 Ibidem, p. 308 e ss.
23 Ibidem, p. 319
24 Ibidem, p. 320-321
25 Ibidem, p. 322
Assim, o direito poderia valorar a técnica e a autoregulação de normas extrapenais, mas não se vincular ao seu conteúdo autorregulado26.
- O Tripartism e o Self Enforcement
A definição do risco juridicamente permitido encerra, no fundo, um conflito social, pois coloca sobre os potencialmente afetados o encargo de suportar os riscos criados por uma determinada atividade e as respectivas consequências dessa mesma atividade27. Nessa linha, a definição do risco permitido deveria, a princípio, passar por uma interlocução entre aqueles que produzem os riscos e os afetados pelos riscos. Em tese, apenas assim haveria legitimidade na fixação dos parâmetros quanto à tolerância dos riscos. Imbuído dessa ideia, Adan Nieto Martín levanta duas possibilidades de superação às críticas de Schunemann, quais sejam: o tripartism e o self enforcement regulation28.
O tripartism consiste na ideia de participação direta dos possíveis afetados e dos portadores de interesses públicos e coletivos na autorregulação, ou seja, sindicatos, ONG’s, associações, entre outros coletivos. Nesse caso, a norma que fixa o risco permitido seria formulada e debatida tanto por aqueles que produzem os riscos (como a indústria) quanto por aqueles que os suportam, como as entidades representativas29. De acordo com Nieto Martín, o tripartism seria mais eficiente do que a regulação tradicional ao mesmo tempo em que evitaria a captura do legislador/regulador pelo poder econômico30. Por outro lado, a proposta do self enforcement consistiria na intervenção da própria Administração Pública na elaboração da norma autorregulatória, através do controle de
26 Ibidem, p. 340
27 PAREDES CASTAÑÓN, José Manuel. El límite entre imprudencia y riesgo permitido en Derecho Penal: es posible determinarlo con criterios utilitarios? In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Vol. XLIX, Fasc. III, 1996, p. 915 ss.26 Ibidem, p. 340
28 NIETO MARTÍN, Adán. Autorregulación, <<compliance>> y justicia restaurativa, In: Autorregulación y sanciones. 2ªed. Directores: Luis Arroyo Jiménez y Adán Nieto Martín. Navarra: Editorial Aranzadi (Thomson Reuters), 2015, p. 105 ss.
29 Ibidem, p. 106
30 Ibidem, p. 106
qualidade da norma autorregulada, especialmente quanto ao nível de eficácia de tais normas e na elaboração de códigos de conduta31.
Nenhuma das propostas acima responde de forma satisfatória a todos os questionamentos levantados por Schunemann, embora intentem garantir algum grau de legitimidade democrática na articulação entre normas extrajurídicas e o direito penal. De qualquer modo, essa tentativa de melhorar a qualidade democrática de tais normas parte de pressupostos equivocados.
O primeiro deles é a suposição de que os órgãos representativos de interesses públicos representam, de fato, os principais afetados pela criação de riscos permitidos. Basta lembrar, por exemplo, de interesses ambientais ou dos consumidores que são defendidos por entidades que podem ignorar as consequências da produção de riscos às minorias políticas não representadas ou desfavorecidas, como populações longínquas ou consumidores de baixa renda. Essas camadas sociais dificilmente serão bem representadas pelas entidades que participam do processo de elaboração junto às corporações.
O segundo pressuposto equivocado é a ilusão de que tais entidades não possam ser capturadas pelo poder econômico. Basta dizer que a crise econômica internacional de 2008 foi impulsionada, entre outros fatores, justamente após a captura das agências de classificação de riscos (agências de rating) pelo poder econômico das instituições financeiras sob avaliação de tais agências, de modo que a avaliação de risco não correspondia ao risco real presente nas operações de crédito imobiliário32. Em teoria, tais agências deveriam tutelar os interesses públicos e coletivos e não os interesses das instituições financeiras emissoras dos títulos de crédito altamente arriscados33. Portanto, o tripartism e o self enforcement não se adequam ao nível democrático necessário para que as normas extrapenais
31 Ibidem, p. 107
32 Cf. https://www.dw.com/pt-br/eua-cobram-responsabilidade-de-ag%C3%AAncias- de-rating-em-crise-financeira-mundial/a-16577597 e http://www.lmfunesp.com.br/page/145. Acesso em: 2 de novembro de 2021 às 10:48.31 Ibidem, p. 107
33 DIAS, Augusto Silva. Imputação objectiva de negócios de risco à ação de infidelidade (Art. 224º, nº1 do Código Penal): o direito penal no mar revolto da crise económico- financeira, p. 7 e ss.
produzidas através desses processos sejam seriamente consideradas no juízo de imputação penal.
3.3. A remissão aos estândares sociais de conduta jurídico penais
Em recente publicação sobre o tema, Pastor Muñoz, professora da Universidade de Barcelona, pretendeu responder grande parte das críticas inicialmente levantadas por Schunemann, partindo do pressuposto que a remissão legal a instrumentos normativos extralegais ou infra legais ocorre em praticamente todas as normais penais. Isto é, as normas penais sempre se refeririam a algum padrão de conduta jurídico penal, o qual seria sempre obtido para além dos limites da norma penal propriamente dita. Nesse raciocínio, inexistiriam normas penais “puras”34, ou seja, o conteúdo proibido é sempre apurável através de normas de natureza diversa da penal (administrativas ou fiscais, p. ex.) ou de matriz extralegal (técnicas ou sociais, p.ex.). Por trás da norma penal existiria, portanto, sempre uma remessa às instâncias externas à lei, de modo que as remissões uma parte indissociável da norma penal35.
Esse pressuposto permite a autora chegar a quatro conclusões intermediárias, quais sejam: a) afirma que a sua ideia se assenta numa perspectiva normativa do injusto penal; b) que o legislador penal não pode ser visto como um ator isolado da sociedade, livre de quaisquer influências, alimentando-se das criações e concepções sociais; e c) que norma penal e lei penal são conceitos distintos, pois a norma penal engloba a lei penal, para além de absorver as categorias dogmáticas da teoria do delito; e d) que a capacidade da lei penal dar segurança jurídica e tipicidade é limitada, visto que a lei penal fornece apenas uma previsão semântica do comportamento proibido pelo legislador, mas não seria o suficiente para, de fato, orientar os cidadãos acerca da proibição da conduta, principalmente em cenários complexos36.
34 PASTOR MUÑOZ, Nuria. Riesgo permitido y principio de legalidad: La remisión a los estándares sociales de conducta en la construcción de la norma jurídico-penal. Barcelona: Atelier, 2019, p. 19
35 Ibidem, p. 19-2034 PASTOR MUÑOZ, Nuria. Riesgo permitido y principio de legalidad: La remisión a los estándares sociales de conducta en la construcción de la norma jurídico-penal. Barcelona: Atelier, 2019, p. 19
36 Ibidem, p. 20-21
Compreendidos esses pontos, Nuria Pastor separa as reais patologias normativas citadas por Schunemann daquelas patologias aparentes, ou seja, aquelas que se baseiam em visões extremadas ou pouco concretas a respeito da articulação entre as normas extrapenais e a imputação penal. Após essa separação, referida doutrinadora entende, na esteira de Schunemann, que as remissões são realmente problemáticas quando feitas de forma acrítica ou quando remetem expressamente aos entes privados a totalidade da função normativa, ou seja, quando se entrega às cegas o dever de definição do risco permitido às instâncias privadas. Isso levaria a uma perda da autonomia do juízo penal sobre a proibição da conduta37.
Nos casos de remissão parcial estática à normas administrativas, os problemas surgiriam com uma possível diferença entre a norma administrativa e o padrão de conduta socialmente correto com vista à proteção do bem jurídico protegido. Na remissão estática, o legislador penal define previamente qual norma administrativa deverá ser seguida pelo destinatário, sem possibilidade de que essa norma venha a ser alterada, por isso se intitulando remissão estática. Ocorre que, em condições estáticas, a norma administrativa poderia se tornar obsoleta, abrindo uma lacuna de punibilidade na norma penal. Isso porque, embora o agente pratique uma conduta anormal aos padrões corretos de segurança, o fato de existir uma remissão estática impede que a pretensão punitiva recaia sobre um comportamento que, apesar de adequado à norma administrativa complementar à norma penal, está desalinhado ao padrão de segurança em vigor no momento da ação, pois o princípio da legalidade penal enquanto lei prévia impediria tal punição38.
Nos casos de remissões tácitas, Nuria Pastor considera que há, inequivocamente, remissão aos estândares sociais de conduta. A Autora alerta, porém, que o magistrado deve evitar um exame isolado sobre a adequação social da conduta no setor administrativo ou às instâncias privadas, pois esses dois âmbitos apenas forneceriam indícios sobre a conduta correta (função indiciária), ideia próxima àquela defendida por
37 Ibidem, p. 118-119
38 PASTOR MUÑOZ, Nuria. Riesgo permitido y principio de legalidad: La remisión a los estándares sociales de conducta en la construcción de la norma jurídico-penal. p. 11837 Ibidem, p. 118-119
André Callegari e exposta no tópico nº 2. Assim, a análise judicial deverá recair sobre a existência de convicções normativas nesses âmbitos a respeito da conduta correta em determinado setor de atividade39. Nuria Pastor explica, como brevemente dito acima, que a necessidade quanto a existência de uma “convicção” a respeito da conduta correta é extremamente necessária para distinguir uma possível prática profissional do consenso real sobre a correção de uma conduta.
A conclusão a que chega Nuria Pastor é que os estândares sociais de conduta aptos a determinar os limites de permissividade jurídico social de uma conduta, fundam-se na ideia de consenso normativo baseado na racionalidade social40. Por consenso normativo, a Autora entende como sendo a opinião normativa que um grupo social teria acerca de uma conduta ou modo de proceder41.
Segundo a autora, essa opinião normativa seria o consenso ou a aceitação sobre o que deveriam dizer os cidadãos a respeito de uma conduta, mas não o que dizem ou o que diriam. O “dever dizer”, neste caso, associa-se à opinião hipotética dos cidadãos acaso fossem “fiéis à racionalidade da sociedade em que vivem”42. Ocorre que a opinião normativa de um grupo social deveria ser extraída também das potenciais vítimas de um determinado comportamento, ou seja, um opinião normativa apenas seria possível acaso houvesse um consenso entre potenciais agentes e potenciais vítimas sobre um conduta ou atividade arriscada. Assim, Nuria Pastor buscaria um destinatário normativo neutro, imparcial, o qual aceitaria os padrões de conduta aceitos independentemente se fosse uma vítima ou um agente de um comportamento potencialmente arriscado43.
Observe que, a partir dessa ideia, é possível alcançar uma maior imparcialidade na distribuição dos custos e dos benefícios em um determinado contexto social. Assim, traduzindo-se para o objeto específico deste artigo, um padrão de conduta social seria permitido ou proibido independentemente da opinião sobre a proibição ter partido da
40 Ibidem, p. 11839 Ibidem, p. 118
41 Ibidem, p. 101
42 Ibidem, p. 102
43 Ibidem, p. 102
vítima ou do autor. Em outras palavras, qualquer um (vítima ou autor) iria acolher o “dever”, a “aceitação” ou o “consenso” de determinada conduta44.
O padrão de conduta seria, então, o denominador comum entre potenciais vítimas e potenciais beneficiários, criando-se um amplo consenso normativo. Aceitar essa premissa, no entanto, não significa que a ideia sobre o consenso normativo estaria acabada, pois a próxima tarefa é descobrir efetivamente qual é o consenso existente sobre determinada atividade é um outro desafio. Aqui, vale reproduzir as palavras de Nuria Pastor: “Seja como for, as dificuldades dessa abordagem aparecem quando se tenta concretizar o caminho metodológico para estabelecer a existência de referida aceitação ou consensos normativos”45.
Na ótica de Nuria Pastor, o caminho metodológico apto para alcançar a existência do consenso normativo é construído a partir do conceito de vontade racional46. De acordo com a Autora, a vontade racional seria composta de critérios matérias diversos, tais como a produção de benefícios e não apenas de malefícios pela atividade arriscada; ou que a permissão de uma determinada conduta traga, à reboque, uma ampliação do espaço de liberdade para todos e não apenas para o produtos dos riscos. Afinal, o núcleo seria desvendar uma normatividade social, através da qual se possa acessar os verdadeiros padrões de conduta socialmente aceitos47.
Vale esclarecer que a vontade racional não se traduz pela aglutinação de opiniões formalmente expressadas, pois isto indicaria uma espécie de consenso meramente formal. Segundo Nuria Pastor, o essencial é a busca por consensos sociais profundos e racionalmente defendíveis, cujas bases deverão se estruturar em critérios aptos a afastar interesses individuais ou juízos predeterminados48. Com isso, o juízo valorativo ancorado no consenso normativo baseado na vontade racional seria generalizável, aplicável a todos49.
44 Ibidem, p. 102
45 Ibidem, p. 103
46 Ibidem, p. 103
47 Ibidem, p. 104
48 Ibidem, p. 104 e ss.
49 Ibidem, p. 106 e ss.
Além das dificuldades metodológicas acima apontadas, Nuria Pastor pontua que em setores especializados, como a indústria ou a medicina, o acesso epistêmico aos padrões de conduta socialmente aceitos é ainda mais trabalhoso, tendo em vista a ignorância do operador do direito quanto à correção de uma conduta ocorrida no bojo de um setor especializado50.
A questão acima teria levado, na Espanha, os juízes em geral a recorrer excessivamente à norma administrativa como referencial seguro para a constituição do dever objetivo de cuidado, além de alçá-la como critério decisivo para a criação de riscos proibidos de cunho penal51. Como visto no tópico inicial e materializado no enunciado nº 23 do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, essa tendência também ocorreu no Brasil, onde praticamente não há discussões na doutrina ou na jurisprudência a respeito dos problemas associados à conclusão automática de que a norma administrativa ou a norma técnica exaurem o conceito de dever objetivo de cuidado ou que a partir do descumprimento de tais normas se chegue automaticamente à conclusão de que houve a criação de um risco penalmente relevante.
Quanto à abordagem do tema no Brasil, vale frisar que, em geral, confunde-se a violação do dever de cuidado com a infração da norma técnica e deontológica, sobretudo nos casos de gestão temerária e de negligência médica. Todavia, isso se repete, ainda, em delitos ambientais e outros crimes do direito penal econômico, nos quais a infração à política de risco interno da pessoa jurídica ou à regulamentação administrativa dos órgãos de defesa econômica se traduz, quase automaticamente, como a consumação do delito imputado. Essa foi a linha seguida pelo já referido enunciado nº 23 e pelo precedente exposto no início deste artigo.
Considerando essa tendência dos tribunais em assumir acriticamente o conteúdo e a eventual infração da norma extrapenal para fins de apuração do injusto, Nuria Pastor esclarece que não é indicado buscar o consenso formal entre os membros ou atores de um setor sobre a correção de determinado comportamento, dado que o ideal seria alcançar o controle material sobre a retidão da conduta no setor onde tal conduta foi
50 Ibidem, p. 112
51 Ibidem, p. 112-113
praticada52. Isso significa que a posição do “agente avaliador” da conduta não é decisiva, mas sim a avaliação setorial, dos pares, sobre a conduta consensualmente aceita ao nível material.
Contudo, divergir da opinião dos “líderes do setor” também é extremamente problemático sob o ponto de vista do julgador, que se vê em absoluto descompasso técnico com relação aos agentes em destaque no setor em causa. Em outras palavras, haveria uma posição de “superioridade informativa”53 entre os juízes e os representantes hierárquicos de um determinado âmbito técnico.
O desnível do conhecimento técnico entre o magistrado e os especialistas acaba por atribuir aos peritos oficiais um posição claramente privilegiada para discutir a correção de um comportamento setorial. Todavia, conceder aos peritos tal encargo acabaria por levar a discussão ao seu ponto inaugural, uma vez que a norma técnica se tornaria, em concreto, o fundamento exclusivo para a imputação penal. Ou seja, a constatação a respeito da violação da norma técnica estaria confirmada através da palavra do perito oficial, de modo que os juízes poderiam incorrer justamente no problema inicialmente citado referente à equiparação acrítica entre as normas extrapenais e a norma penal.
De qualquer modo, fato é que tanto o conceito de consenso normativo; quanto o de vontade racional são indeterminados, talvez por não serem capaz de traduzir o nível verdadeiro de tolerância de minorias políticas ou excluídos, o que se agrava em sociedades plurais e complexas.
Não significa dizer que a articulação entre normas penais e extrapenais deva ser rechaçada, visto que essa complementação pode incrementar o nível de proteção aos bens jurídicos de relevância penal. O crucial é que essa articulação não faça o aplicador do direito perder de vistas o fato que o ilícito penal vai muito além da mera infração de normas técnicas ou extrapenais.
3. Conclusão
Os tribunais e a doutrina brasileira têm dado pouca importância à equivocada equiparação entre a infração de normas extrapenais e a
52 Ibidem, p. 113
53 Ibidem, p. 113-114
produção de riscos jurídico penais relevantes. A infração de normas extrapenais deve ser encarada, no máximo, como indício da prática do delito, pois a norma penal abarca elementos que extrapolam a mera violação de normas técnicas ou administrativas. No direito penal econômico, em especial no crime de gestão temerária, a infração de normas técnicas ou setoriais têm sido alçada como único fundamento necessário para se imputar e condenar o agente econômico pela prática do delito de gestão temerária, como visto nos dois precedentes citados inicialmente.
A absorção automática do conteúdo normativo produzido por instâncias extrapenais levanta problemas de natureza diversa, como a violação do princípio da legalidade penal, da determinação, da divisão dos poderes e do princípio democrático. Ainda mais grave é a absorção de normas privadas para a fixação do risco permitido, pois há um repasse da competência para definir os limites do risco permitido pelo próprio destinatário da norma penal, de modo que o agente econômico produtor de riscos penalmente relevantes se converteria em uma espécie de legislador em causa própria.
A doutrina tem defendido várias posições, dentre as quais se destacam: a) a posição defendida por Bernd Schunemann, que parece rechaçar qualquer tipo de articulação entre regras técnicas ou extrajurídicas com a norma penal, sustentando a violação de princípios constitucionais básicos; b) a posição de Nieto Martín, que propõe o aumento do qualidade democrática de normas provenientes da autorregulação através dos processos de tripartism e self enforcement, admitindo, sem embargos, tais normas como parâmetros válidos para a fixação do risco permitido; e c) a posição defendida por Nuria Pastor Muñoz, que encara as remissões legais como elemento invariável de toda norma penal, de modo que a fixação do risco permitido deve passar por um profundo processo de análise do consenso normativo da conduta e da vontade social racional, atribuindo, por fim, aos peritos a palavra final sobre a correção de um comportamento, desde que seguindo critérios e deveres antes estabelecidos.
O uso de normas extrapenais para a aferir a produção de riscos proibidos para fins de imputação penal deve ser feita com extrema cautela e a infração a tais normas jamais pode ser utilizada como fundamento
único e exclusivo para sustentar uma determinada prática criminosa, exercendo apenas uma função indiciária da prática de delitos, especialmente do crime de gestão temerária.
É necessário compreender que a norma penal exige um desvalor da ação condizente com a gravidade da sanção jurídica aplicável, de modo que, para além da infração da norma extrapenal, faz-se necessário que o comportamento imputado seja revestido de desvalor suficiente para sustentar a incidência da norma penal, como a infração grave dos deveres associados à atividade econômica exercida (i.e., não basta a mera infração, exigindo-se maior gravidade na violação); a presença clara de temeridade na conduta e que esta vá além de um mero comportamento arriscado condizente com o âmbito econômico financeiro; que tanto a ação quanto o seu resultado fossem controláveis pelo agente imputado e, portanto, que a situação de temeridade da gestão desencadeada pelo agente fosse por ele previsível.
BIBLIOGRAFIA:
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Precedentes citados:
STJ. REsp nº 1.613.260/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 09/08/2016, DJe 24/08/2016.
STJ. HC nº 469.631/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 09.10.2018, DJe 17/10/2018.
STF. ARE 953.446 AgR, Rel. Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, DJe 24/08/2018.