A Lei 12.850/13 trouxe nova normatização às organizações criminosas, dispondo, além de sua definição, métodos de investigação criminal, meios de obtenção de prova e procedimento criminal. Criou, assim, um novo crime, e, em relação a este, dispôs sobre variada ordem de coisas. Entre elas, sobre o assunto que tomou de assalto as discussões do país: a noção de colaboração premiada.
Observe-se assim, que dentre os meios de obtenção de prova, a lei das organizações criminosas reiterou a permissão da utilização da colaboração premiada, matéria que, é verdade, já prevista em legislações anteriores, embora tratassem elas, do instituto apenas no aspecto material, fornecendo benefícios variados a quem, de qualquer forma, tivesse colaborado de maneira efetiva e voluntária com a investigação.
Assim, acurou o legislador na Lei 12.850/13 em detalhar a forma da colaboração, traçando o procedimento para se alcançar o benefício. Inovou, ainda, quanto aos benefícios a serem ofertados ao colaborador, mencionando, portanto, modalidades de não denúncia, e outras, como o surgimento da possibilidade de se obter a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, benefício que não estava disciplinado nas construções normativas anteriores, que apenas admitiam a possibilidade da redução da pena e do perdão judicial. Criou, textualmente, a oportunidade do Ministério Público deixar de oferecer denúncia quando preenchidos alguns requisitos atinentes à condição pessoal do colaborador. Sobre tais favores legais, estabeleceu-se certa falácia, a qual merece nova leitura.
Não há dúvida, que a utilização da colaboração premiada pode gerar um benefício ao acusado, mesmo que interfira apenas e diretamente na redução das consequências negativas do crime. Independentemente da classificação que se dê à norma que instituiu a colaboração premiada na Lei 12.850/13 — norma de natureza processual, penal ou processual com conteúdo penal —, é certo que, por trazer benefício de ordem penal, a ela deve ser aplicado os atributos da retroatividade. No entanto, existem certos limites.
As normas atinentes à colaboração premiada, malgrado tenham um conteúdo essencialmente processual, também dizem respeito a medidas despenalizadoras, atingindo frontalmente o poder punitivo, o que lhe encaminha ao tratamento empregado nos casos de leis penais benéficas, impondo a sua adequação aos casos em apuração, mesmo que regidos no tempo por legislação anterior.
O grave problema na utilização da colaboração premiada prevista na Lei 12.850/13 em relação a fatos pretéritos, não se finca na possibilidade de sua retroatividade. Esse, fato indiscutível.
A colaboração instituída pela lei, malgrado possa trazer inúmeros resultados positivos, principalmente naqueles casos excepcionais que resultam da gravidade dos crimes e da complexidade das investigações, deve estar subordinada à reserva da lei, curvando-se, indeclinavelmente, ao princípio da legalidade, principalmente porque só a lei pode prever um crime e sua pena. Se a colaboração atenua ou exclui penas, já previamente definidas em lei, deve seguir o estrito caminho ditado pela vontade do legislador, especificamente no que dispõe a Lei 12.850/13.
O importante a se destacar é que o recriado instituto de colaboração premiada, na forma apresentada, claramente está voltado a disciplinar um dos meios de prova para a apuração do crime de organização criminosa e infrações penais correlatas. Ou seja, o legislador teve como intenção redefinir o procedimento e os benefícios da colaboração visando, exclusivamente, à apuração do crime de organização criminosa, definido e, portanto, tipificado, naquela mesmo diploma legal.
O princípio da legalidade estaria banido do nosso sistema constitucional, acaso o Ministério Público, e até mesmo o Poder Judiciário, pudesse se arvorar na condição de legislador para aplicar o instituto da colaboração, além dos limites estatuídos pela Lei 12.850/13.
Não há de se trilhar maiores caminhos para se obter, na própria lei, a intenção do legislador. O artigo 4º ao estabelecer as condições para se alcançar os benefícios previstos no caput, condicionou tal benesse à obtenção de diversos resultados, in verbis:
I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
E mais: quando o legislador no §4º, trata acerca dos casos em que o Ministério Público pode deixar de oferecer denúncia, estabelece no inciso I que o colaborador poderá receber o benefício desde que não seja o líder da organização criminosa.
Não resta dúvida, por conseguinte, que o benefício na forma como foi criado o instituto só pode ser aplicado aos casos em que o agente tenha promovido, constituído, financiado ou integrado, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.
J. J. Gomes Canotilho e Nuno Brandão, em artigo publicado recentemente na Revista de Legislação e de Jurisprudência, intitulado Colaboração premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato, são incisivos ao afirmar que a colaboração premiada da Lei 12.850/13 tem o seu cerne na figura da organização criminosa. Há de se ver:
“Considerando esses fundamentos político-criminais e atento o dever estatal de estrita observância do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, temos para nós que o regime legal da Lei 12.850 tem um âmbito normativo bem delimitado, circunscrevendo-se ao delito de organização criminosa e aos crimes a ele ligados, isto é, aos crimes da organização (as infrações penais correlatas a que se refere o artigo 1º da Lei 12.850/13).
Crimes externos à organização criminosa caem fora da alçada da Lei 12.850/13 e não podem de objecto de perseguição criminal com recurso aos meios de obtenção de prova nela consagrados e definidos, designadamente, à colaboração premiada. Pois não foi para esses fenômenos criminais que tais meios foram especificadamente pensados e postos à disposição da investigação criminal pelo legislador federal. A não ser assim, ficaria aberto caminho para que meios de investigação excepcionais pudessem banalizar-se e ser usados para a repressão de crimes ou contextos criminais cuja gravidade de modo algum justificaria intromissões tão severas na esfera dos direitos de liberdade dos cidadãos como as que são inerentes aos meios de obtenção de prova enunciados no artigo 3º da Lei 12.850/13.”
Imaginando-se que a norma dispõe de benefícios, mas também de situação mais gravosa, vale dizer, da previsão de novo crime de organização criminosa, parece inconteste afirmar-se sua irretroatividade.
Os atributos da retroatividade no caso concreto, inerentes às normas penais benéficas, só poderiam ser aplicáveis aos fatos em apuração, consumados antes da vigência da lei, acaso já houvesse, no tempo da conduta praticada, a definição do crime de organização criminosa, já que o benefício só se aplica como meio de obtenção de prova com finalidade exclusiva: facilitar a apuração desse crime específico e as suas infrações correlatas.
Como de fato não havia definição anterior, e a própria Lei 12.850/13 foi a responsável por normatizar as condutas típicas previstas como crime de organização criminosa, não há que se falar na aplicação do instituto, de suas regras e procedimentos, benefícios e medidas despenalizadoras em favor de investigados, quando incidirem na prática de outras condutas criminosas, previstas em outras legislações ou no Código Penal.
O argumento irretorquível, não impossibilita, genericamente, a aplicação do instituto da colaboração premiada nesses outros casos, desde que o agente tenha praticado outros delitos, distintos ou que não sejam correlatos à organização criminosa, antes da vigência da Lei 12.850/13. O certo é que os benefícios e a forma de sua aquisição devem se submeter a outras legislações (anteriores à Lei 12.850/13), vigentes à época dos fatos criminosos praticados.
Não se deve perder de vista que as provas obtidas mediante colaboração premiada serão utilizadas contra terceiros delatados, possuidores de garantias fundamentais, contra os quais se exige a existência de um processo válido, no qual só se admite como prova lícita aquela que advenha da adequação lei-processo. E estes terceiros poderão ser partes legítimas para pleitear a posteriori a nulidade da delação e dos respectivos benefícios concedidos ao delator.
Não se olvida que, para além da Lei 12.850/13, no nosso ordenamento, o instituto da delação já possuía previsão na Lei 8.072/90 (crimes hediondos); Lei 7.492/86 (crime contra o sistema financeiro nacional); Lei 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária e relações de consumo); Lei 9.613/98 (lavagem de capitais); Lei 9.807/99 (lei de proteção a vítimas e testemunhas); Lei 11.343/2006 (lei antitóxicos) e no próprio Código Penal. Contudo, os regimes não eram equivalentes e só podem ser aplicados em cada âmbito material típico. Defeso, pois, a cumulação destes, salvo quando se trata de acusações de delitos coincidentes.
Destarte, nas condutas criminosas não cingidas à Lei 12.850/13, os investigadores só poderão se utilizar da colaboração premiada, como obtenção de meio de prova, em conformidade com a lei vigente à época dos fatos, no limite do regime aplicável a cada tipo, respeitando-se o procedimento válido para sua utilização.
É certo que tanto o Código Penal quanto as leis anteriores à Lei 12.850/13, por tratarem o instituto exclusivamente no aspecto material, descuraram de seu procedimento, impondo que os benefícios auferidos com a colaboração só e, unicamente, sejam analisados pelo julgador quando da sentença condenatória. Ou seja, independentemente do acordo firmado com os investigadores, o delator só poderá se beneficiar com a redução da pena ou o perdão judicial, após o transcurso normal do processo, no momento da sentença condenatória, ao critério e nuto do julgador, acaso preenchidos os requisitos previstos em lei.
Como conclusão lógica, em termos contemporâneos, não cabe aos crimes distintos da organização criminosa, quando da utilização da colaboração premiada como meio de obtenção de prova, a aplicação do §2º (os investigadores a qualquer tempo, poderão requerer ao juiz pela concessão do perdão judicial ao colaborador), §3º (o prazo para o oferecimento da denúncia poderá ser suspenso por até 6 meses), §4º (o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I e II), §5º (se a colaboração for posterior a sentença, a pena poderá …), §7º (realizado o acordo, a colaboração será remetido ao Juiz para homologação…) e §10 (as partes podem retratar-se da proposta …), todos procedimentos atinentes à apuração e obtenção de meio de prova nos crimes de organização criminosa, posto que trazidos exclusivamente no bojo desse diploma legal.
Portanto, a utilização desses benefícios em procedimentos para apuração de crimes praticados antes da vigência da Lei 12.850/13, ou quando não se tenha a presença de uma organização criminosa, invalida o acordo de colaboração firmado tornando a prova ilícita, por ferir o princípio da reserva legal, haja vista a impossibilidade de o poder judiciário assumir a função do legislador para alargar e estender a períodos pretéritos a aplicação de regras e procedimentos que foram disciplinados apenas para apuração do delito de organização criminosa.
https://www.conjur.com.br/2017-jun-09/rigueira-neto-limites-temporais-colaboracao-premiada