“NÃO SE ADMITE A IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO CABÍVEL”
Os equívocos dogmáticos por trás do mantra replicado pelas Cortes Superiores
Vinícius Costa Rocha[1]
Só uma garantia satisfaz, só uma garantia protege, só uma garantia não se sofisma: a do habeas corpus, na sua simplicidade augusta, com a sua faculdade invedável de acesso onde quer que se produza violência de poder (Ruy Barbosa, O estado de sítio: suas condições, seus limites, seus effeitos, p. 36).
O artigo discute a procedência dos argumentos que levaram a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal a firmar o entendimento de que não é admissível a impetração de ordem de habeas corpus em substituição ao recurso legalmente previsto.
No primeiro capítulo, realiza-se uma análise documental das razões de decidir dos precedentes restritivos, com a apresentação do “estado da arte” da jurisprudência das Cortes Superiores sobre o tema. No segundo, por meio de revisão bibliográfica, critica-se o raciocínio hoje prevalecente, apontando-se as matrizes autoritárias que sustentam a manutenção dessa ideia. No último, propõe-se a abolição do posicionamento restritivo, afirmando-se que o acúmulo de processos nos Tribunais Superiores, principal justificativa elencada pelos ministros, não pode ser resolvido pela deturpação do histórico remédio constitucional.
2. FUNDAMENTOS UTILIZADOS PELAS CORTES SUPERIORES PARA “NÃO CONHECEREM” DE ORDEM DE HABEAS CORPUS IMPETRADAS “EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PRÓPRIO”
2.1. HC 109. 956/PR: as razões do acórdão paradigma da Primeira Turma do STF.
O precedente responsável por obstar a impetração de habeas corpus em substituição ao RHC foi firmado pela Primeira Turma do STF no julgamento do HC 109.956/PR, em agosto de 2012.[2] Relator desse writ, o Min. Marco Aurélio Mello invocou duas razões primordiais para fundamentar sua proposta de overruling.[3]
Primeiro, enfatizou que os HC’s substitutivos eram admitidos em época na qual não havia a sobrecarga de processos no STF e no STJ. Assim, devido à mudança de cenário marcada pelo acúmulo de impetrações submetidas àquelas Cortes, a admissão do habeas “inviabilizaria o exercício da jurisdição”.
Em seguida, o ministro trouxe um “reforço dogmático” à sua irresignação: a seu ver, a possibilidade de se impetrar HC contra acórdãos denegatórios de outro habeas corpus seria uma “construção jurisprudencial” enfraquecida pelos arts. 102, II, “a”, e 105, II, “a”, da CRFB, os quais preveem, respectivamente, o cabimento dos recursos ordinário e extraordinário nessas hipóteses.
Segundo Marco Aurélio, a impetração do HC como “sucedâneo recursal” também servia de “artifício cômodo para alcançar a passagem do tempo que deságua em prescrições”, prejudicando os “cidadãos em geral” e a “própria cidadania.”
Instadas a se pronunciarem na sequência, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia fizeram coro ao voto do relator. Cármen Lúcia acrescentou, inclusive, que o HC substitutivo é problemático por provocar indevidas “alteração de competências” e “alteração dos requisitos” intrínsecos aos recursos, maculando a “racionalidade do sistema recursal”.
O Min. Toffoli, por outro lado, abriu divergência. Na sua ótica, a via do habeas corpus, desde o Código Processual do Império, sempre foi adequada para sanar toda e qualquer forma de constrangimento ilegal que restrinja a liberdade do cidadão. Justamente por isso, não se poderia criar restrições ao seu cabimento.
Apesar da força desse argumento, os demais ministros não reconsideraram suas posições. Vencido, Toffoli também não propôs a submissão da controvérsia ao Plenário,[4] permitindo que fosse firmada, ali, a reviravolta jurisprudencial.
2.2. Reflexos do precedente da Primeira Turma na jurisprudência do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça.
No ano de 2013, a Segunda Turma do STF se pronunciou sobre o cabimento de HC como “sucedâneo recursal”.[5] Nessa ocasião, a controvérsia foi suscitada pela Procuradoria-Geral da República, que, em parecer, invocou a incidência do precedente firmado pela Primeira Turma nos autos do HC 109.956/PR, buscando o não conhecimento da ordem de habeas corpus.
Designado como relator, o Min. Gilmar Mendes rejeitou a pretensão da PGR: segundo ele, embora fosse louvável a preocupação com o risco de banalização do writ, não se poderia deixar de atribuir a máxima efetividade à garantia prevista no art. 5º, LXVIII, da CRFB.
Os demais componentes da Corte concordaram integralmente com o posicionamento de Gilmar Mendes e, assim, sacramentaram a divergência entre as duas Turmas do STF sobre o cabimento dos HCs substitutivos.
O Plenário da Corte, por outro lado, tardou em definir sua posição. Somente cinco anos depois, no julgamento de ordem de habeas corpus impetrada em favor do ex-presidente Lula para suspender a execução provisória da pena imposta pelo TRF-4, o órgão máximo do Supremo expôs seu posicionamento sobre a controvérsia.
Nessa ocasião, o Min. Edson Fachin, então relator, reproduziu as razões de decidir fincadas pela Primeira Turma, reiterando que o art. 102, II, “a”, da CRFB reflete a opção do poder constituinte originário de excluir a possibilidade de nova impetração contra acórdãos denegatórios de HC. Sob a mesma ótica, os ministros Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia votaram pelo não conhecimento do writ.
Inaugurando a divergência, Alexandre de Moraes afirmou que o cabimento do habeas corpus – devido à própria elasticidade que lhe é conferida desde a doutrina de Ruy Barbosa – deveria sempre ser interpretado “da maneira que mais se proteja a liberdade de locomoção.”
Os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes decidiram do mesmo modo. Este, inclusive, direcionou forte crítica à jurisprudência defensiva da Primeira Turma, sugerindo que poderia haver um abismo entre o número de concessões de habeas corpus prolatadas por cada um dos órgãos fracionários.[6]
Em seguida, o Min. Marco Aurélio, que havia inventado a tese de não cabimento dos HCs substitutivos, mudou seu entendimento. Argumentando, dessa vez, que o writ é “ação de envergadura maior”, proclamou que seu cabimento seria incontestável sempre que restasse cerceada a liberdade do paciente, sendo irrelevante a existência de outro instrumento apto a impugnar a decisão judicial.
No fim do seu voto, o ministro fez singela ressalva que, sob certo olhar, justificava o fato de ele, seis anos antes, ter iniciado a marcha pelo não conhecimento de HCs substitutivos: era preciso distinguir as situações em que o habeas é impetrado para cessar violações à liberdade de ir e vir daquelas nas quais é utilizado de “forma abusiva”.
Essa tal abusividade, contudo, permaneceu indecifrável.
Embora, por meio desses argumentos, o Plenário tenha rechaçado o entendimento firmado pela Primeira Turma, não se viu a pretendida uniformização jurisprudencial: em completa revelia, aquele órgão fracionário continuou inadmitindo os HCs substitutivos. Como se não bastasse, a Terceira Seção do STJ adotou tal posicionamento restritivo e, dessa maneira, dissipou divergência que também existia entre seus órgãos fracionários.[7]
O acórdão paradigma foi firmado no julgamento do HC nº 535.063/SP. Nele, após o Min. Sebastião Reis Júnior proferir seu voto apenas sobre a discussão de mérito, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca arguiu inesperada questão de ordem: havia chegado aos seus ouvidos a notícia de que o site “Migalhas” divulgou que a Quinta Turma estava desrespeitando a jurisprudência da Terceira Seção sobre o cabimento dos HCs substitutivos. Na sua concepção, tal relato era inverídico e merecia reprimenda expressa daquela Corte, a partir da uniformização do entendimento sobre o assunto.
Partindo para a exposição de sua opinião, Reynaldo destacou que deveriam prevalecer as razões de decidir exaradas pela Primeira Turma do STF e pelo STJ em diversos julgados, a fim de que se proibisse, in abstrato, o conhecimento dos HCs substitutivos.
Logo em seguida, o Min. Rogerio Schietti Cruz manifestou divergência, enfatizando que o perigo desse entendimento advém da própria incoerência lógica de, muitas vezes, decidir-se pelo não conhecimento do writ, mas conceder-se a ordem de ofício. Para Schietti, a complicação dessa ideia se revela até mesmo para fins estatísticos, pois se torna difícil – para não dizer impossível – mapear quando há denegação da ordem (extinção com resolução do mérito) e quando há inadmissão do HC (extinção sem resolução do mérito).
Assentados os dois posicionamentos conflitantes, a controvérsia foi dirimida da seguinte forma: enquanto todos os integrantes da Quinta Turma acompanharam o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, os membros da Sexta Turma seguiram a divergência instaurada pelo Min. Schietti.
A vitória do debate pela Quinta Turma teve a matemática como causa exclusiva: devido à ausência do Min. Saldanha Palheiro e o impedimento regimental ao voto do Min. Néfi Cordeiro (ambos da Sexta Turma), as conclusões do Min. Reynaldo Fonseca tiveram o acolhimento de um número maior de ministros.
Desde então, a Terceira Seção não voltou a discutir o tema e, ainda hoje, continua a replicar o entendimento de que não se admite HCs substitutivos quase como um mantra, avaliando, logo em seguida, a possibilidade de “concessão da ordem de ofício”.
Estabelecido o panorama jurisprudencial, passa-se à análise do raciocínio que levou à prevalência do posicionamento restritivo.
3. EVIDENTES DESACERTOS DAS RAZÕES QUE FUNDAMENTAM A INADMISSÃO DE HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO.
3.1. Habeas Corpus como histórico instrumento de collateral attack e a ausência de relação excludente entre o direito à impetração e o direito ao recurso.
Conforme antecipado, o primeiro argumento que ampara a tese jurisprudencial sob análise é o de que a Constituição, ao instituir o RHC (arts. 102, II, “a”, e 105, II, “a”), excluiu a possibilidade de nova impetração do writ contra acórdãos denegatórios da ordem impetrada anteriormente. A lógica é trivial: se o constituinte previu recursos variados para impugnar as diversas espécies de decisões em matéria penal, utilizar o “genérico” remédio do habeas corpus representaria certo menoscabo à sofisticação do sistema por ele engendrado.
Essa ideia ganha força com a invocação ao chamado “princípio da unirrecorribilidade das decisões”.[8] Outrossim, autores como Pacelli e Douglas Fischer[9] acrescentam que tolerar os HCs substitutivos significa, em certas hipóteses, consentir com burlas aos requisitos específicos de admissibilidade dos recursos, como o REsp e o RE.
Minuciosa investigação sobre os pilares históricos dos meios de impugnação das decisões judiciais demonstra que argumentos desse gênero são insustentáveis. Para que se chegue a esse conclusão, basta responder a três perguntas sucessivas e condicionais: i) há distinção entre o HC e os recursos? ii) se sim, em que ela que consiste?; iii) também em caso positivo, existe critério dogmático que vede a coincidência entre as hipóteses de cabimento desses mecanismos?
A resposta à primeira questão depende da definição do que significa recurso. Oriundo do latim “recursus”, tal termo remete à ideia de “retroceder.”[10] No império de Augusto, na Roma Antiga, era justamente isso o que ele representava: a appelatio permitia que o cidadão levasse ao imperador seu inconformismo com a decisão de juiz que atuava sob delegação.
Dessa maneira, retomava-se, em “segunda instância”, todas as discussões já realizadas perante o primeiro juízo. Aliás, o imperador, quando recebia o apelo, tinha poderes irrestritos para julgá-lo: não se submetia aos argumentos apresentados pelas partes em primeiro grau, tampouco às provas produzidas até então. Era a verdadeira expressão do novum iudicium.[11]
Embora a estruturação do recurso nessa época tenha sido pensada para preservar o absolutismo do imperador, o direito à impugnação, como destaca Lucas Buril,[12] já revelava sua razão de ser: servir como instrumento de controle político das decisões judiciais.
Com o passar do tempo, tal finalidade se consolidou, e hoje ninguém duvida que a recorribilidade das decisões judiciais é pilar fundamental do Estado de Direito,[13] não havendo que se falar na existência deste quando não se tem à disposição instrumentos de “controle da jurisdição sobre a jurisdição”.[14]
Essa é a segunda constatação indispensável à resposta, de uma só vez, às duas primeiras perguntas: afinal, se a razão de ser dos recursos é promover um controle político das decisões, haveria distinção entre eles e a ação de habeas corpus?
Embora a doutrina clássica sempre tenha tratado de fazer essa diferenciação, certo é que os critérios distinguidores sempre se resumiram a aspectos procedimentais,[15] ignorando-se eventual identidade entre as razões de existir desses dois meios impugnativos.
A explicação é simples: como ressalta Giovanni Leone,[16] o direito à impugnação das decisões judiciais é o direito à remoção do prejuízo causado pelo ato impugnado. Nesse ângulo, não há dúvidas de que os recursos e as ações autônomas de impugnação possuem a mesma finalidade dentro de um sistema processual.
Na verdade, ainda que se direcione a análise para o aspecto da relação jurídica vivenciada no processo, a similaridade entre os recursos e os meios impugnativos autônomos se mostra patente, pois ambos inauguram, com a sua instauração, relação distinta daquela existente no processo originário.[17]
Ademais, uma análise histórica do habeas corpus revela que sempre lhe foi intrínseca a função de, assim como o recurso, servir como instrumento de contrapoder[18] dos cidadãos frente aos abusos perpetrados pelos agentes estatais. Justamente por isso, não há dúvidas quanto à resposta correta sobre os dois primeiros questionamentos: por técnica e vontade legislativa, o habeas corpus, de fato, possui natureza de ação. No entanto, consoante atesta José Frederico Marques, ele verdadeiramente “é um recurso, no sentido jurídico-material da expressão, pois se dirige contra ato de Estado”.[19]
Sobra, portanto, a terceira questão. Para que se chegue à sua resposta, é preciso ir além e observar que o direito ao recurso no processo penal – no sentido genérico do termo – somente se concretiza quando o sistema oferece remédios aptos a neutralizar, da forma mais rápida possível, os excessos do poder punitivo.[20]
Com as transformações do “Estado-Penitência”,[21] a função antes reputada à pena é, hoje, exercida no próprio processo. Nas palavras de Ferrajoli: “a berlinda e o colar de ferro foram substituídos pela exibição pública do acusado nas primeiras páginas dos jornais ou na televisão, e isto não após a sua condenação mas após a sua incriminação.”[22] Essa é a sanção mais temida, e é para isto que deve servir – e serve – o habeas corpus: restituir, como uma rápida boia lançada em alto-mar, o fôlego dos asfixiados pelo poder punitivo estatal.
Por essas razões, mesmo possuindo ratio essendi análoga à dos recursos, o HC detém particularidade que o torna instrumento único dentro do nosso sistema processual: a rapidez com a qual ele pode restaurar a liberdade do cidadão constrangido ilegalmente.[23] Segundo as lições do Conselheiro Lafayette, primeiro-ministro do Brasil nos anos de 1883 a 1884:
O que particularmente o distingue e caracteriza é a prontidão e a celeridade com que ele restitui a liberdade aquele que é vítima da prisão ou constrangimento ilegal. […] É esta a razão porque leis não subordinam um recurso tal às fórmulas lentas e demoradas, que de ordinário se observam para a reforma de atos e decisões emanadas de autoridades legalmente constituídas. É esta, ainda, a razão por que leis dão, pelo habeas corpus, ao Poder Judiciário, competência tão fora das regras gerais e comuns de direito. Evitar ou fazer cessar de pronto e imediatamente a prisão ou constrangimento ilegal, porque qualquer destes fatos, importando a violação de um direito fundamental da personalidade humana, causa danos e sofrimentos irreparáveis, tal é a natureza e o fim do habeas corpus.[24]
Quando se conhece a evolução histórica do habeas corpus, percebe-se como ele se estruturou justamente para ser técnica de “collateral attack” das decisões judiciais. É ação, e não recurso, para possuir procedimento próprio, mais rápido do que quaisquer outros previstos no ordenamento.
Feitas tais considerações, não há como se sustentar que o uso do HC substitutivo viola a “racionalidade” do sistema recursal. Na verdade, o constituinte racionalmente tornou o habeas corpus um remédio funcional ao sistema punitivo: com rapidez, ele evita não somente a restrição de direitos por tempo excessivo, mas também permite a ágil reprimenda de vícios processuais que abalariam a efetividade constitucional do processo.[25]
Como ressalta Pontes de Miranda,[26] as Constituições de 1891, 1934 e 1946 foram claríssimas ao atribuir efetividade sui generis à ação de habeas corpus: de forma singela, mas incontestável, determinavam que a ordem seria concedida “sempre” que houvesse constrangimento ilegal, deveria a ordem ser concedida.
Inexistem razões para se pensar que a Carta de 1988 atribuiria valor menor ao writ. Aliás, como acentua Vinícius Vasconcellos,[27] é o habeas corpus – com seus atributos específicos – que pode atender à exigência convencional imposta pelo art. 7.6 da CADH.
Todos esses argumentos afastam, ainda, o “meio-termo” proposto pelo Min. Marco Aurélio,[28] restringindo o cabimento dos HCs substitutivos às hipóteses de prisão.
Apesar de tal ideia parecer razoável sob um primeiro olhar, o mergulho na nossa realidade evidencia os problemas que ela acarreta. Como exemplo, relembre-se o quanto é difícil pleitear a rejeição de denúncia inepta, via RHC, quando a instrução processual já está perto do fim. Em verdade, saber como funciona o processo penal permite concluir que as nulidades, quando não extirpadas de imediato, acabam se cristalizando: uma vez coletadas “provas robustas”, torna-se quase impossível anular um processo por “vício de forma.”[29] Some-se a isso, ainda, toda a problemática por trás da “prova do prejuízo efetivo” que serve aos magistrados como amuleto para o desrespeito à forma dos atos processuais.[30]
Em suma, não há como se defender, à luz da dogmática, que o habeas corpus não se presta a impugnar decisões também passíveis de impugnação por recursos previstos em lei, seja qual for o grau de ameaça à liberdade de locomoção provocado por elas.[31]
Aos que insistem nessa tese, apenas sobram enredos consequencialistas, como a necessidade de se coibir o “excesso de impetrações”. Neste trabalho, entretanto, nem mesmo essa ideia é tolerada. Passa-se à explicação.
3.2. Excesso de impetrações e a visão atrofiada das reais causas do problema: o sistemático desrespeito a precedentes pelos Juízos de primeira e segunda instância.
Antes de se avaliar o argumento “prático” suscitado pelo Min. Marco Aurélio no julgamento paradigma, deve-se ressalvar que a crítica à tese proposta por ele não ignora, e não pode ignorar, o gravíssimo problema do acúmulo de processos nos tribunais superiores.
Na realidade, o ponto nevrálgico da discussão está na principal causa desse problema: quando se analisa os principais temas que circundam os HCs em trâmite, percebe-se que o excesso de impetrações não é causa, mas sintoma de problema muito mais grave.
Em pesquisa coordenada por Vinícius Vasconcellos no ano de 2019, constatou-se que a imensa maioria dos HCs submetidos ao Supremo pleiteava ou a revogação de prisões preventivas não fundamentadas, ou a aplicação da minorante do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, ou a imposição de um regime menos gravoso para cumprimento inicial da pena.[32]
Cinco anos antes, Thiago Bottino[33] teve a mesma percepção, acrescentando que, dentre as dez teses mais veiculadas nos habeas corpus impetrados perante o STF, metade já tinha sido pacificada por aquela Corte ou pelo STJ. É o caso, por exemplo, dos inúmeros writs que impugnavam valorações de ações penais em curso e inquéritos como circunstâncias desfavoráveis na dosimetria da pena.
Diante dessa conjuntura, fica claro que o excesso de impetrações somente reflete o avanço irrefreado e ilógico do poder punitivo estatal.
Também por essa circunstância, defender que o alto número de impetrações atrapalha a produtividade dos tribunais é ter, nas palavras de Toron,[34] visão atrofiada sobre a razão de ser do Judiciário: julgar habeas corpus é uma das missões mais relevantes que a Constituição outorgou às Cortes Superiores.
Mais ainda: consoante acentua João Oliveira,[35] quando o STF concede a ordem a um cidadão, ele acaba por transmitir aos órgãos hierarquicamente inferiores e aos jurisdicionados uma lição sobre o que pode e o que não deve ser admitido no processo penal. É dessa forma que o processo se torna um “instrumento político de participação”.[36] Assim também ilustrava Pontes de Miranda: “quase todos, no próprio interior do país, sabem que se pode pedir habeas corpus para si, ou para outrem, e – o que é mais importante – que a denegação permite que se vá até tribunal local ou ao próprio Supremo Tribunal Federal.”[37]
Deve-se ter em mente, no mesmo toar, que, se houve um aumento no número de impetrações, isso também se deve ao fortalecimento das Defensorias Públicas, as quais, com imenso esforço, têm sido cada vez mais combativas na defesa de seus assistidos. Se, como destacado por Thiago Bottino e Vinícius Vasconcellos, os temas mais veiculados nos HCs submetidos ao Supremo se relacionam a casos de prisões, sejam preventivas ou definitivas, verifica-se que são os pobres e os marginalizados – principais alvos da criminalização secundária – os prejudicados pela restrição ao cabimento do remédio.
Rememore-se, ademais, que, ainda em 1912, quando o STF discutia os limites de cabimento da ação de habeas corpus, o então ministro Eneas Galvão deixou claro que, havendo necessidades sociais, é papel do Supremo atender à demanda alargando a amplitude do remédio constitucional máximo:
Acho que não há erro na ampliação do habeas corpus. Se o conceito do habeas corpus evoluiu por esse modo é porque as necessidades da nossa organização social e política o exigiram, como resultado de repetidos ataques à liberdade individual, determinando, assinalando, uma função maior, mais lata, ao instituto do habeas corpus. No nosso meio político, os repetidos ataques à liberdade individual impuseram a necessidade de alargar a concepção do habeas corpus, o exercício deste meio judicial. O Tribunal está cumprindo sua missão de tutelar dos direitos, está evoluindo com as necessidades da justiça: se há excesso, é o excesso que leva ao caminho da defesa das liberdades constitucionais.[38]
Por fim, constata-se inventar uma hipótese de não conhecimento de HCs seria injustificável até mesmo à luz da eficiência. Afinal, como adverte Guilherme Dezem,[39] o fato de os tribunais terem o dever de conceder a ordem de ofício em casos de “flagrante constrangimento” faz com que se mantenha, na prática, um alto número de HCs substitutivos manejados diariamente. Na verdade, com o passe livre para utilizar a técnica de “não conhecimento”, os julgadores somente mantêm o poder discricionário de definir quando há, ou não, o tal “flagrante” constrangimento.[40]
4. NOTAS CONCLUSIVAS
Como se viu, a atual radiografia da jurisprudência é a seguinte: no STF, enquanto o Plenário e a Segunda Turma aceitam a impetração de HCs substitutivos, a Primeira Turma continua a não conhecer dos writs nessas hipóteses.
Já no Superior Tribunal de Justiça, além de serem recorrentes as decisões que inadmitem HCs substitutivos de Recursos Ordinários e Especiais, também se amealham diversos acórdãos de não conhecimento de writs manejados após o trânsito em julgado da sentença condenatória, como sucedâneos de Revisão Criminal.
Nada obstante, todas as turmas do STF e do STJ autorizam a concessão da ordem de ofício nos casos de “flagrante” ou “manifesto” constrangimento ilegal. Com essa ressalva, justificam que a restrição ao cabimento do HC não impõe ônus ao paciente, pois, tão logo verificada a violação à liberdade de ir e vir, será ele contemplado pela concessão da ordem.
Diante desse panorama, um olhar consequencialista certamente trucidaria a continuação deste trabalho: se, no fim das contas, as Cortes concedem o habeas corpus quando vislumbram o constrangimento ilegal, qual o sentido de prosseguir com crítica preciosista ao ato de “não conhecer” dos HCs?
Realmente, essa é uma interpretação possível.
Seria endossada, inclusive, pelo fato de o Min. Marco Aurélio Mello, “criador” da fórmula de inadmissão de HCs substitutivos, ter voltado atrás e lamentado a inovação jurisprudencial fomentada por ele anos antes. Em dezembro de 2014, ao ser questionado pela Revista Consultor Jurídico sobre as restrições impostas pelo Supremo aos habeas corpus, Marco Aurélio declarou que “se arrependimento matasse, hoje eu estaria morto.”[41]
A posição aqui defendida, porém, não enxerga que a mesquinha[42] “benevolência” de se autorizar a concessão da ordem de ofício torna dispensável o prosseguimento do debate. Tampouco se acredita que é possível abdicar da discussão pelo simples pelo “convencimento” do inventor do Frankenstein acerca dos males decorrentes de sua criação.
As razões para ir além são várias.
A primeira é extraída da própria fala do Min. Marco Aurélio naquela mesma entrevista: segundo ele, apesar de ter sido proposta a adoção de um “meio-termo” à proibição dos HCs substitutivos, o rigor excessivo “caiu no gosto” dos ministros, os quais passaram a proferir decisões cada vez mais restritivas e em maior número.[43]
A ideia preambular de coibir o uso do HC como “bombril” acabou perdendo o controle e acarretou a criação de standard probatório ainda maior para a concessão da ordem,[44] satisfeito apenas nas indecifráveis situações de “flagrante” ou “manifesto” constrangimento ilegal.[45]
Em contexto no qual só aumenta o número de HCs julgados monocraticamente, essa discricionariedade é ainda mais problemática: tudo acaba variando conforme a postura do ministro, e o colegiado – quando é instado a se manifestar pela via do Agravo – geralmente só reflete a “síndrome da unanimidade.”[46]
A segunda circunstância que impõe o avanço do debate é a falácia por trás do argumento de que a vedação aos HCs substitutivos permite preservar a racionalidade do sistema recursal. Como observado pelo Min. Schietti Cruz no voto comentado anteriormente, a anômala técnica de “não conhecer, mas conceder a ordem de ofício” provoca desserviço, e não auxílio à integridade do sistema de impugnação das decisões judiciais.
Acabou-se por ignorar que as hipóteses de inadmissão dos meios impugnativos são excepcionalíssimas, e não cabe aos tribunais criarem empecilhos que a lei sequer cogita, atrapalhando a função clarificadora[47] do sistema de justiça. É justamente isso o que Barbosa Moreira relata sobre a repercussão das decisões de “não conhecimento”, as quais lembram “refeições em que, após os aperitivos e os hors d’oeuvre, se despedem os convidados sem o anunciado prato principal.”[48]
Em verdade, quando se faz uma algazarra entre as situações de “não conhecimento” e de improcedência da ação de habeas corpus, confunde-se os próprios sujeitos à prestação jurisdicional. Ao interporem recursos ou impetrarem HCs, eles exercem – por meio da impugnação – o mesmo direito.[49]
Constatados tais problemas e reconhecido que as Cortes Superiores se mostram cada vez mais infensas à apreciação de HCs, não é exagero pensar que, daqui a um tempo, essa jurisprudência defensiva provocará a perda absoluta das referências que se tem sobre o writ.[50]
Com permissão à analogia, criticar esses posicionamentos à luz das características que arrimam o habeas corpus é exercício tão crucial quanto o desempenhado pela população de “Macondo” na clássica obra de García Márquez.
Acometido por assustadora perda de memória decorrente de grave insônia, aquele povoado, para continuar exercendo suas atividades vitais, precisou etiquetar objetos do cotidiano com seus próprios nomes: “mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, caçarola.”[51]
Observando, porém, que chegaria o dia em que as coisas seriam reconhecidas por sua inscrição, mas não por sua utilidade, necessitaram ser mais explícitos, passando a descrever: “esta é a vaca, e deve ser ordenhada todas as manhãs para que produza leite, e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café, e fazer o café com leite.”[52]
No caso do habeas corpus, o que torna sua razão de ser uma “realidade escorregadia” é o autoritarismo manifestado no processo penal por “metástases inquisitórias.”[53] Estas, após décadas de redemocratização, sobrevivem em raciocínios tecnicistas, que acabam conferindo um disfarce a institutos e pensamentos estranhos a uma realidade democrática.
Por tudo isso, precisa-se reafirmar as características que atribuíram ao writ – e continuam lhe atribuindo – uma funcionalidade única.
A partir do momento em que as Cortes Superiores reconhecerem a obviedade dessa afirmação, imperiosa é a imediata partida para o debate sobre temas que realmente importam. Até lá, fica-se com a reflexão de Nilo Batista: “o individualismo, no direito, tem essa propriedade: embora cegue, enseja discussões elegantíssimas.”
De fato, não se vê cegueira mais grave do que supor que ilegalidades podem deixar de ser reconhecidas pelas Cortes Superiores somente porque se optou – ou teve-se a “necessidade” – de impugná-las por meio do habeas corpus, e não por meio de um recurso mais lento e menos efetivo do que aquele clássico instrumento de contenção do abuso estatal.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
BADARÓ, Gustavo. Processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 270.
BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O HC sempre foi uma garantia ampla contra abusos. Revista Consultor Jurídico, 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-24/direito-defesa-defesa-uso-habeas-corpus. Acesso em: 16 mai. 2022.
BOTTINO, Thiago. Habeas corpus nos tribunais superiores: análise e propostas de reflexão. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
CALAMANDREI, Piero. Proceso y democracia. Trad. Hector Zamudio. Buenos Aires: Ejea, 1960.
CANÁRIO, Pedro. Exagero na racionalização dos trabalhos dos tribunais prejudica cidadania. Revista Consultor Jurídico, 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-dez-21/entrevista-marco-aurelio-ministro-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 30 ago. 2022.
COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Buenos Aires: B de F, 2005.
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
EID, Elie Pierre. Impugnação das decisões judiciais: reconstrução da relação entre recursos e ações autônomas de impugnação. Salvador: Juspodivm, 2022.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002.
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v.1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Um enfoque constitucional da teoria geral dos recursos. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
LEONE, Giovanni. Manuale di procedura penale. Napoli: Eugenio Jovene, 1962.
LIMA, Alcides Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. 2. ed. São Paulo: RT, 1976.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2019.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis. Salvador: Juspodivm, 2019.
MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v. 4. Campinas: Bookseller, 1997.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2021.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1974.
NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas corpus. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
OLIVEIRA, João Rafael de. O Habeas Corpus como instrumento formador de precedente vinculante: proposta de aprimoramento à sistemática do habeas corpus em Tribunais Superiores. Tese (Doutorado em Direito). Brasília/DF: IDP, 2022.
PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao código de processo penal e sua jurisprudência. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
PEDRINA, Gustavo Mascarenhas; BARBOSA, Eduardo Ubaldo. Uma história antiga: o Supremo Tribunal Federal e o habeas corpus. PEDRINA, Gustavo Mascarenhas; et al. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus. 3. ed. Campinas: Bookseller, 2007.
RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal: doutrina Brasileira do Habeas-Corpus (1910-1926). v.3. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e processamento do writ. São Paulo: RT, 2017.
TORON, Alberto Zacharias. Julgar habeas corpus aumenta, e não diminui produtividade dos tribunais. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/toron-julgar-hcs-aumenta-nao-diminui-produtividade-tribunais. Acesso em: 16 mai. 2022.
TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. São Paulo: Saraiva, 1987.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 4. São Paulo: Saraiva, 2011.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2004.
VALENÇA, Manuela Abath. “Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 88, ano 22, out./dez. 2014.
VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de; MASCARENHAS, Gustavo; SALLES, Caio; DUARTE, Áquila Magalhães. Habeas corpus concedidos pelo Supremo Tribunal Federal em 2019: pesquisa empírica e dados estatísticos. VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de; et al. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Limites cognitivos do exame judicial em habeas corpus nos tribunais superiores. PEDRINA, Gustavo Mascarenhas; et al. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[1] Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Cofundador e Diretor de Ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE. Advogado criminalista. E-mail: viniciusrocha@rigueiraadvocacia.com.br
[2] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus n.º 109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, Primeira Turma, julgado em 07/08/2012, DJe 11/09/2012.
[3] Como ressalta Lucas Buril, a técnica de superação do precedente (overruling) consiste justamente na substituição de uma ratio decidendi por outra. (MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 311). Ao que parece, essa foi a intenção do Min. Marco Aurélio ao propor a supressão do HC substitutivo com base em fundamentos até então não discutidos pela Corte.
[4] Embora o art. 6º, II, “c”, do Regimento Interno do STF atribua ao relator a prerrogativa de remeter habeas corpus para julgamento em Plenário, a alínea “b” do mesmo dispositivo também faz tal concessão à Turma. Com base nesse dispositivo, o Min. Toffoli poderia suscitar que aquela controvérsia, de grande relevância, deveria ser dirimida pelo órgão máximo da Corte. No entanto, não o fez.
[5] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas corpus n.º 116.437/SC, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 04/06/2013, DJe 19/06/2013.
[6] Em análise estática sobre as decisões da Primeira e Segunda Turmas do STF em HC’s, Vinícius Vasconcellos e outros pesquisadores concluíram que, na realidade, é a Primeira Turma que concede mais habeas corpus por meio de decisões colegiadas. Os motivos que levam a isso, porém, são diversos, e extrapolam o presente trabalho, podendo ser vistas detalhadamente em: VASCONCELLOS, Vinicius; PEDRINA, Gustavo; DUARTE, Áquila; SALLES, Caio. Habeas corpus concedidos pelo Supremo Tribunal Federal em 2019: pesquisa empírica e dados estatísticos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 172, p. 323-352, 2020.
[7] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus n.º 535.063/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 10/06/2020, DJe 25/08/2020.
[8] Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 4. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 412.
[9] PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao código de processo penal e sua jurisprudência. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1523. Argumentos similares foram expostos pela Min.ª Cármen Lúcia no julgamento do HC 109.956/PR e também são vistos em: LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1.809.
[10] Nesse tom: COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Buenos Aires: B de F, 2005, p. 277; LIMA, Alcides Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. 2. ed. São Paulo: RT, 1976, p. 123.
[11] MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 67.
[12] Ibidem, p. 79.
[13] GRINOVER, Ada Pellegrini. Um enfoque constitucional da teoria geral dos recursos. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 65.
[14] Expressão utilizada por EID, Elie Pierre. Impugnação das decisões judiciais: reconstrução da relação entre recursos e ações autônomas de impugnação. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 53.
[15] É o caso, por exemplo, das classificações feitas por Lauria Tucci e Pontes de Miranda acerca das espécies de ação presentes no writ of habeas corpus: TUCCI, Rogério Lauria. Habeas corpus, ação e processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 43; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit, p. 31.
[16] LEONE, Giovanni. Manuale di procedura penale. Napoli: Eugenio Jovene, 1962, p. 380.
[17] Deve-se ressalvar que o conceito de relação processual penal não é unitário. Parte-se, aqui, da lógica que a enxerga a partir das posições jurídicas exercidas pelos sujeitos do processo, conferindo ao acusado o status de sujeito de direitos. Nesse sentido, e por todos: TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 13-15.
[18] TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal, questões controvertidas e processamento do writ. São Paulo: RT, 2017 p. 35.
[19] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. v. 4. Campinas: Bookseller, 1997, p. 351-2.
[20] PASTOR, Daniel. La nueva imagen de la casación penal: evolución histórica y futuro de la dogmática de la impugnación en el derecho procesal penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 95, trad. livre
[21] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 84.
[22] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 588.
[23] Tatiana Castro observa que, já nos primeiros manuais de processo criminal do Brasil republicano, a celeridade era o atributo que os juristas utilizavam para distinguir o habeas corpus de qualquer outro meio de impugnação de atos estatais: (CASTRO, Tatiana de Souza. “Assim se espera justiça”: o remédio jurídico do habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (1920-1929). Tese (Doutorado em História). Seropédica/RJ: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2018, p. 91-2)
[24] Esse clássico discurso foi publicado pelo Conselheiro Lafayette em parecer oferecido ao Conselheiro do Estado, no ano de 1883. Assim narram: NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 387; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 190-1.
[25] Nesse sentido: TORON, Alberto Zacharias. Op. cit., p. 71.
[26] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus. 3. ed. Campinas: Bookseller, 2007, p. 384.
[27] VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Limites cognitivos do exame judicial em habeas corpus nos tribunais superiores. PEDRINA, Gustavo Mascarenhas; et al. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 126.
[28] Vide capítulo 2.2.
[29] TORON, Alberto Zacharias. Op. cit., p. 72.
[30] Sobre a “prova diabólica” do prejuízo, importantes são as considerações de Gustavo Badaró em: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022., rb. 14.5.
[31] Assim também declara Pierpaolo Bottini, acrescendo que “a tendência foi a de sempre ampliar o cabimento do remédio jurídico”, e não restringi-lo. (BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O HC sempre foi uma garantia ampla contra abusos. Revista Consultor Jurídico, 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-24/direitodefesa-defesa-uso-habeas-corpus. Acesso em: 16 mai. 2022).
[32] VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de; MASCARENHAS, Gustavo; SALLES, Caio; DUARTE, Áquila Magalhães. Habeas corpus concedidos pelo Supremo Tribunal Federal em 2019: pesquisa empírica e dados estatísticos. VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de; et al. Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[33] BOTTINO, Thiago. Habeas corpus nos tribunais superiores: análise e propostas de reflexão. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
[34] TORON, Alberto Zacharias. Julgar habeas corpus aumenta, e não diminui produtividade dos tribunais. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/toron-julgar-hcs-aumentanao-diminui-produtividade-tribunais. Acesso em: 16 mai. 2022.
[35] OLIVEIRA, João Rafael de. O habeas corpus como instrumento formador de precedente vinculante: proposta de aprimoramento à sistemática do habeas corpus em Tribunais Superiores. Tese (Doutorado em Direito). Brasília/DF: IDP, 2022.
[36] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50.
[37] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit, p. 200.
[38] O discurso do Min. Eneas Galvão foi transcrito por: RODRIGUES, Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal: doutrina Brasileira do Habeas-Corpus (1910-1926). v.3. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 33-4.
[39] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, rb. 16.125.
[40] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais [livro eletrônico]. Op. cit., rb. 23-5.
[41] CANÁRIO, Pedro. Exagero na racionalização dos trabalhos dos tribunais prejudica cidadania. Revista Consultor Jurídico, 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-dez-21/entrevista-marco-aurelioministro-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 30 ago. 2022.
[42] Expressão utilizada por Alberto TORON em crítica a um projeto de reforma do CPP que restringiria as hipóteses de cabimento do HC: Habeas corpus está sendo amesquinhado. Revista Consultor Jurídico, 2010. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2010-mai-20/habeas-corpus-sendo-grosseiramente-amesquinhado cpp#:~:text=Em%20que%20pese%20a%20ret%C3%B3rica,diz%C3%AA%2Dlo%2C%20grosseiramente%20a mesquinhado Acesso em: 16 mai. 2022.
[43] Ibidem.
[44] Nesse sentido: TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e processamento do writ. São Paulo: RT, 2017, p. 92
[45] Críticas relevantes vistas em: BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais [livro eletrônico]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, rb. 22-3. Segundo ele, o entendimento jurisprudencial ora avaliado é, a um só tempo, ilógico, inconstitucional e perigoso.
[46] O uso dessa expressão e análise dessa problemática foi feita pela Prof.ª Manuela Abath Valença, em pesquisa feita no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (VALENÇA, Manuela Abath. “Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 88, ano 22, out./dez. 2014). Por indução, afirma-se que essa é a tendência na atribuição de amplos poderes aos ministros para julgarem habeas corpus monocraticamente.
[47] Expressão cunhada por: CALAMANDREI, Piero. Proceso y democracia. Trad. Hector Zamudio. Buenos Aires: Ejea, 1960, p. 37.
[48] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 270.
[49] Crítica semelhante é vista em Guilherme Nucci, o qual afirma que: “se é para não conhecer, torna-se difícil convencer os advogados a não impetrar o habeas corpus se há, na prática, avaliação do seu conteúdo, podendo a Corte – o que vem fazendo – conceder a ordem de ofício” (NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas corpus. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 203).
[50] Seguindo a afirmação de Lucas Buril de Macêdo, não se pode perder de vista que o conceito, quando perde a capacidade de referenciar o fenômeno para o qual foi criado, torna-se uma ferramenta inútil (MACÊDO, Lucas Buril de. Objeto dos recursos cíveis. Op. cit., p. 29).
[51] MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2021, p. 55.
[52] Ibidem, p. 56.
[53] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v.1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.., p. 335.