No processo penal contemporâneo e especialmente nas atuais investigações conduzidas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, as autoridades vêm fazendo uso crescente da produção de provas cautelares mediante autorização judicial. A necessidade de chancela do Judiciário, dentre outros requisitos, relaciona-se à imperiosidade de se reconhecer a presença do interesse público/coletivo na investigação, de forma tão relevante que se permitem diligências as quais, a priori, constituem violação a direitos fundamentais do investigado.
Este interesse público se encontra consagrado inclusive no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Trata-se de verdadeiro exercício de ponderação de princípios: afastam-se garantias constitucionais sobre direitos individuais à intimidade, privacidade, sigilo das correspondências e comunicações em prol do interesse público inerente à investigação de crimes, considerando-se o monopólio estatal do poder punitivo.
Se o interesse coletivo é fundamento para afastar garantias individuais com vistas à produção de provas no processo penal, também deve-se observar que a finalidade desta coleta de provas à revelia de direitos fundamentais é bastante restrita: instruir a investigação ou o processo penal no bojo do qual foi autorizada. Tanto que, repita-se, o inciso XII é claro em determinar a finalidade específica da mitigação de direitos fundamentais mediante autorização judicial “para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
A autorização para produzir provas mediante a quebra de garantias constitucionais, portanto, não inclui a divulgação livre ou utilização destas provas para outras finalidades, mas apenas para instruir a investigação ou o processo penal.
A publicidade dos atos processuais, no desenrolar da História, foi sendo implementada para evitar os processos obscuros e ocultos, mediante a utilização de meios cruéis e atualmente ilícitos de obtenção de prova. Em suma, garante-se ao investigado ou acusado o pleno acesso aos elementos de prova até então produzidos contra ele e cujas diligências se encontrem concluídas, conforme consagrado pela Súmula Vinculante 14 do STF. Por consequência destes corolários, também se exige que as decisões judiciais sejam transparentes quanto à fundamentação invocada (artigo 93, IX, da CF) para ulterior controle de órgão judicial superior.
Por outro lado, é certo que a democratização do país, com o advento da Constituição Federal de 1988, buscou afastar as heranças ditatoriais do período histórico anterior, e o Plenário do Supremo Tribunal Federal chegou a reconhecer que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela nova Constituição (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7-DF/2009).
Portanto, também são direitos e garantias fundamentais amparados na Constituição Federal: a livre manifestação do pensamento e das comunicações (liberdade de imprensa), bem como a garantia de publicidade dos atos processuais.
Todavia, com o vertiginoso aumento de investigações que contam com o deferimento de medidas cautelares assecuratórias e de produção de prova, uma nova questão se coloca no âmbito da ponderação destes princípios constitucionais (liberdade de imprensa e publicidade dos atos processuais x direitos fundamentais individuais).
Havendo nos autos de investigação provas produzidas mediante a flexibilização de direitos fundamentais do investigado, não se tem dúvidas de que, uma vez concluídas as diligências, o sigilo para a partes deve ser levantado, franqueando-se à defesa acesso a todo o seu conteúdo. Todavia, poderia este mesmo processo estar livremente à disposição do público e, em especial, poderiam as autoridades responsáveis por conduzir a investigação prestar declarações, entrevistas e, de qualquer forma, expor livremente estas provas encartadas aos autos?
Por ora, não há dúvidas de que os atos processuais, em geral, são públicos, em especial no interesse do acusado, conforme anteriormente esposado. Todavia, as provas cautelarmente produzidas diferem infinitamente das provas angariadas através de investigação comum, justamente por terem sido autorizadas judicialmente, na proteção do interesse público e mediante o afastamento de direitos fundamentais dos investigados (ponderação de princípios constitucionais).
A própria Constituição oferece um norte para o tema, quando define, no artigo 5º, inciso LX, que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
Não se pode olvidar que a preservação do interesse social também invoca a ideia de justiça social, e o direito coletivo de acesso à justiça e, por conseguinte, a julgamentos justos. A sociedade, como um todo, também precisa confiar no judiciário e na justiça como instrumento democrático e republicano, consubstanciado no acesso a um julgamento justo, mediante a obediência às regras processuais penais (ótica formal) mas também o mais protegido possível de influências externas (ótica material).
Um dos grandes desafios atualmente colocados ao Judiciário é justamente o esforço de não ser permeabilizado pela influência de agentes externos, notadamente a mídia, através da chamada publicidade opressiva. A doutrina atual tem se debruçado sobre esta potencial influência da mídia e dos vazamentos na imprensa de provas inseridas nos processos no resultado final do julgamento.
Neste contexto, a norma Constitucional também apresenta um norte: em contraponto ao interesse social, também tutela o interesse individual, através do limite à publicidade dos atos processuais com vistas a salvaguardar a intimidade do investigado, como direito fundamental que é.
Indo ainda mais além, o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, no artigo 8º, 5, prevê a possibilidade de restringir a publicidade dos atos no processo penal para preservar os interesses da justiça.
Apresenta-se, portanto, o desafio de ponderar entre o direito fundamental do investigado à intimidade e vida privada (já mitigado para a produção da prova cautelar) e a publicidade dos atos processuais junto com a liberdade de imprensa constitucionalmente garantida.
Neste sentido, Simone Schreiber vem debatendo o tema com atenção à ponderação dos princípios constitucionais acima relacionados, alertando para a publicidade opressiva dos julgamentos criminais. A autora explica que no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7/DF, em 2009, o Plenário do STF, por maioria, decidiu pela não recepção da lei de imprensa pela Constituição Federal de 1988. Observa, todavia, que a Suprema Corte não consignou que tal direito é absoluto e impassível de qualquer restrição frente a outros direitos fundamentais.
Nesta linha de intelecção, o professor Nilo Batista chama a atenção para o histórico de espetacularização do processo penal: à época da inquisição, o sigilo ao longo de todo o processo (inclusive para o réu) se mostrava extremamente nocivo, com o objetivo de tornar público apenas o cumprimento da pena, mediante execuções e castigos em praça pública.
Na atualidade, com a quase universalizada pena de prisão, a execução da pena não possui mais qualquer apelo midiático, de maneira que a espetacularização se deslocou para a investigação e para o julgamento. Nesta toada, o eminente professor observa que “A liberdade de imprensa geralmente prevalece sobre o direito à privacidade”. [1]
O professor frisa que, quando se transfere o raciocínio para países com democracia mais consolidada, “quando o confronto se dá com a presunção de inocência e o direito ao julgamento justo, a solução é distinta”. Observem-se soluções citadas pelo professor em seu artigo:
A Corte Suprema dos EUA manifestou desconforto por ter identificado “julgamento pela imprensa” e anulou condenações. Numa delas, registrou que “o julgamento não passou de uma cerimônia legal para averbar um veredicto já ditado pela imprensa e pela opinião pública que ela gerou”.
Alertou que o noticiário intenso sobre um caso judicial pode tornar nula a sentença e que a publicidade dos julgamentos constitui uma garantia constitucional do acusado e não um direito do público.
Na Europa, o assunto preocupa legisladores e tribunais. França e Áustria criminalizaram a publicação de comentários sobre possíveis resultados do processo ou sobre o valor das provas.
Em Portugal, a publicação de conversas interceptadas em investigação é criminalizada, salvo se, não havendo segredo de Justiça, os intervenientes consentirem na divulgação: o sigilo de Justiça vincula todos aqueles que o acessarem a qualquer título.
Perceba-se que os autores, em linhas gerais, estão se referindo ao processo penal de forma genérica, ou seja, independentemente de ter havido a produção de provas com mitigação de direitos fundamentais ou não.
Quando se chega a uma decisão judicial que autoriza a produção da prova cautelar de interceptação telefônica e telemática, evidentemente foram mitigados direitos fundamentais na consideração do interesse público na investigação, mediante uma ponderação legitima e também prevista na Constituição Federal.
Todavia, ao se admitir eventual publicização da prova amealhada, disponibilizando-a aos órgãos de imprensa, nova ponderação de princípios é realizada, desta feita em flagrante colisão com a finalidade estrita estabelecida na primeira ponderação, qual seja, instruir a investigação.
Ora, se foi necessário (I) obter autorização judicial para a coleta das provas, por força de determinação constitucional; (II) se tais elementos ainda deverão ser apresentados submetidos ao contraditório ao longo da instrução processual e (III) ainda serão submetidos também ao crivo de legalidade a posteriori, tendo em vista a possibilidade concreta de ter havido procedimentos de mácula à legalidade daquelas provas, não há absolutamente nenhuma razão para se admitir que, de forma antecipada e sem qualquer critério, as autoridades investigativas estejam autorizadas a veicular na imprensa seu conteúdo (!).
No ponto, cumpre mencionar o paradigmático caso relacionado ao então governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho. O STF confirmou o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no sentido de proibir a veiculação pela imprensa do conteúdo de interceptações telefônicas reconhecidamente ilegais, aduzindo não haver qualquer inconstitucionalidade na decisão do Tribunal a quo que proibiu esta divulgação pela mídia (STF: Medida Cautelar na petição 2702-7).
À época, a imprensa argumentou que a “população teria o direito de informação” acerca do tema, todavia, o STF, cumprindo devidamente seu papel de instância contramajoritária de proteção aos direitos fundamentais, manteve firme a decisão e não cedeu à pressão pública.
Por outro lado, observam-se as nefastas consequências do paradigmático caso do vazamento ilegal de trechos de interceptação telefônica entre os ex-presidentes Lula e Dilma. Observe-se: a prova foi vazada quando ainda detinha presunção de licitude, todavia, foi declarada ilícita a posteriori pelo STF, mas era impossível restaurar o status quo anterior ao vazamento, qual seja, de preservação da privacidade dos interlocutores.
Realizando uma análise conjunta dos dois casos, se o STF já consignou a impossibilidade de se divulgar uma prova ilícita, não se pode admitir a divulgação de uma prova (mesmo que ainda detenha presunção de licitude) antes de manifestação judicial definitiva sobre seu conteúdo, após o devido contraditório e ampla defesa no processo, bem como sem controle posterior de legalidade.
Afinal, a análise da ilegalidade de uma prova cautelar não se limita a avaliar os fundamentos da decisão que a decretou, mas também envolve avaliar, dentre vários aspectos, (I) a forma de execução/coleta da prova em seus aspectos formais e materiais e (II) a preservação da cadeia de custódia desta prova nos autos. Desta forma, a prova pode ser considerada nula a posteriori mesmo que se reconheça a legalidade da decisão autorizativa.
Além disso, não se olvide que vem se tornando praxe no país não apenas a veiculação das provas produzidas mediante flexibilização de direitos fundamentais, mas também a concessão de entrevistas coletivas pelas autoridades investigativas, sempre acompanhadas de avaliação hermenêutica daquelas provas.
Sem qualquer demérito acerca da autoridade policial, deve-se atentar para a cada vez mais comum figura do policial hermeneuta, ou seja, aquele que interpreta as provas cautelarmente produzidas no processo sob sigilo das partes e as conduz diretamente a uma coletiva de imprensa, conforme sua própria interpretação (e eventualmente seus próprios interesses).
Necessário frisar, portanto, que além de todos os problemáticos aspectos já mencionados, é certo que nem o próprio Juiz julgará a causa com base naquele “recorte” momentâneo da prova, invocado pela autoridade policial ou pelo Ministério Público em coletiva de imprensa sobre determinada fase da investigação, mas sim no momento processual oportuno para a sentença, quando todo o conjunto probatório lhe é apresentado.
Portanto, com todo o respeito às autoridades investigativas e o Ministério Público, este exercício hermenêutico é privativo do juiz competente para a ação penal e cogitar o contrário se mostrou, reiteradamente, muito temerário para as instituições democráticas e republicanas do país.
O caso em que indubitavelmente o problema ganhou consequências gravíssimas para toda a economia do país foi a emblemática operação carne fraca.
Conforme amplamente noticiado, após o deferimento de medidas cautelares pelo judiciário, a autoridade policial se encaminhou aos holofotes e à imprensa com vistas a relatar os elementos de prova colhidos mediante interceptação telefônica que haviam ensejado a fase ostensiva da operação. Restaram nítidos os problemas decorrentes de a autoridade policial proferir um juízo hermenêutico e valorativo acerca do conteúdo das interceptações.
Em pronunciamento acerca dos habituais vazamentos de informação à imprensa ocorridos ao longo da operação “lava jato”, em violação ao dever funcional de sigilo (tipo penal do artigo 325 do CP), Gilmar Mendes pontuou que “Investigações devem ter por objetivo produzir provas, não entreter a opinião pública ou demonstrar autoridade”.
Neste contexto, deve-se ter em mente que o sigilo do inquérito policial “é imposto não para impedir o livre exercício da imprensa, mas para assegurar o bom andamento das investigações; mas, como a presunção de inocência ainda nem sequer está posta à prova, pois não temos ainda um processo penal, o juiz deve assegurar o direito à intimidade quando a mídia tiver nítido interesse em realizar um julgamento midiático, tornando o inquérito sigiloso”[2]
A veiculação de provas produzidas em violação aos direitos fundamentais do acusado representa grave risco (I) ao princípio constitucional da paridade de armas no processo penal, pois a tese veiculada na imprensa cinge-se às conclusões das autoridades investigativas e acusatórias, sem direito ao devido contraditório; (II) ao direito a um julgamento justo, tendo em vista que a pressão midiática e a opinião pública representam fatores de pressão contra o judiciário.
Por fim, observe-se que a requerida determinação de sigilo dispensa a elaboração de lei que a preveja, pois o mero exercício hermenêutico (ponderação de princípios) à luz da Constituição já se permite determinar que os órgãos investigativos se abstenham de apresentar informações colhidas mediante a produção de provas com flexibilização de direitos fundamentais.
Nesta toada, estar-se-ia realizando a melhor ponderação entre princípios no caso concreto. Ensina Gilmar Mendes que “No conflito entre princípios, deve-se buscar a conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro”.
Pois bem: impedir a veiculação do conteúdo das provas produzidas mediante mitigação de direitos fundamentais não implicará qualquer violação ao direito de imprensa e ao direito de informação. Acaso estas provas sejam relevantes para condenar ou absolver, estarão mencionadas na sentença definitiva, à qual será concedida a devida publicidade.
E mais: a medida pleiteada não depende em absoluto do conteúdo (valor) da prova produzida, muito menos se ela será utilizada ao final do processo para absolver ou condenar. O sigilo se faz necessário por si mesmo, em face da realização de uma segunda ponderação de princípios (publicização da prova x privacidade, intimidade e direito ao julgamento justo), sem prejuízo da ponderação anterior, realizada quando da própria autorização da prova (interesse público x privacidade e intimidade). Desta forma, estar-se-ia evitando eventual publicidade opressiva em detrimento do acusado, bem como a interferência de fatores externos no julgamento.
1 BATISTA, Nilo. Nilo Batista: Corte Europeia já pune “publicidade opressiva” como a usada contra Lula. 29/01/2017. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/denuncias/nilo-batista-corte-europeia-ja-pune-publicidade-opressiva-como-a-usada-contra-lula.html. Consulta: 30/03/2017.
2 FIGUEIREDO, Herivelton Rezende de. A publicidade da mídia nos julgamentos criminais e o sigilo judicial. Revista eletrônica Lex Magister. Disponível em: http://www.lex.com.br/doutrina_26052222_A_PUBLICIDADE_DA_MIDIA_NOS_JULGAMENTOS_CRIMINAIS_E_O_SIGILO_JUDICIAL.aspx. Consulta: 30/03/2017.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2017-abr-13/provas-produzidas-mitigacao-direitos-sigilosas