Não é novidade a preocupação legislativa e do Poder Judiciário com a proteção dos animais. Já em 1937 vigia o Decreto 24.645, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, que em seu artigo primeiro já determinava que “todos os animais existentes no País são tutelados do Estado”, definindo como maus-tratos “manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento e o descanso, ou os privem de ar e luz”. Na linha do pensamento legislativo da época, o juiz paranaense Antônio Leopoldo dos Santos, visando ao cumprimento do comando normativo, resolveu por impor ao sr. João Mansur Karan a reprimenda de 17 dias de prisão e multa, por ter morto a pancadas um cavalo de sua propriedade.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu determinar a inconstitucionalidade de uma lei cearense que regulamentava a vaquejada, um esporte da mais pura tradição cultural nordestina, que movimenta milhões de reais enquanto atividade econômica, geradora de milhares de empregos diretos e indiretos. A vertente majoritária — por 6 votos a 5 — guiou-se pela proteção constitucional ao meio ambiente, reconhecendo o tratamento cruel dispensado aos animais envolvidos. O boi passou a ser considerado sujeito de direitos, submetido que estava a uma violência física e mental.
Daí, numa simples canetada, alçaram o nosso vaqueiro — cujo manejo de vida é o boi, que tem no feitio de sua farda de gala (gibão) o couro curtido do animal homenageado, que foi por décadas cantado em verso e prosa, protagonista dos aboios, herói dos repentes — na figura de um criminoso, torturador vil, capaz de imprimir sofrimentos sórdidos ao que ele considera mais nobre, cúmplice fiel do seu dia a dia.
Olvidou o STF, que a vaquejada é cultura, porque representa a vida como ela é, porque conseguiu traduzir no esporte a valentia do vaqueiro na catingueira, na pegada do boi foragido, num ciclo obrigatório de uma atividade econômica que alimenta o nosso povo.
Foi seletivo o STF ao desprezar da “organização criminosa”, o açougueiro dos matadouros e frigoríficos, os ginetes da tradição gaúcha, os peões de rodeio na representação do cowboy americano, o cavaleiro do hipismo e o medalhista olímpico do cross country, o jockey das corridas nos ingleses de puro sangue, enfim, nós outros que ousamos, porventura, pôr uma sela num cavalo vítima, que merecia cavalgar sem qualquer fardo em seus costados.
Mas a vida segue e é cíclica e, como tal, nos faz reviver os idos de 1937, o juiz Antônio Leopoldo dos Santos, que como o STF agiu de inopino e resolveu punir com os rigores da lei o desavisado proprietário de um cavalo — naquele caso uma tortura materializada.
Esse julgamento, que puniu o torturador e impôs ao cavalo a condição de vítima, serviu de parâmetro e paradigma ao advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Convocado pela OAB para realizar a defesa do preso político Harry Berger e, se deparando com as condições degradantes que se encontrava o seu cliente, encarcerado numa cela sem luz, com pé direito de 60 cm, sem banho e dormindo sobre pedras, resolveu, na ausência de um sistema legal adequado e na presença de um Judiciário reticente e amordaçado, invocar o Decreto de Proteção e Defesa dos Animais. O Decreto recém assinado por Vargas foi utilizado por Sobral como base e fundamento à impetração de um Habeas Corpus em prol de seu cliente, equiparando-o à condição de animal irracional, merecedor da tutela do Estado. A tese extravagante, mas de uma sensibilidade poética e jurídica sem precedentes, foi aceita, após uma verdadeira batalha jurídica perante o extinto Tribunal de Segurança Nacional.
O STF que condenou por 6 x 5 o vaqueiro nordestino e salvou o boi torturado, por placar idêntico, determinou a execução provisória das penas impostas aos presos condenados em segunda instância, antes do trânsito em julgado da decisão. Mesmo diante de dados estatísticos irrefutáveis que demonstravam que, na larga maioria dos casos submetidos ao Superior Tribunal de Justiça e ao STF, os condenados tinham suas penas canceladas ou mitigadas em julgamentos posteriores, resolveu impor aos cidadãos o cárcere antecipado, mesmo sabedores que esse suplício poderia, como pode, se transformar numa grande injustiça.
É essa a parcela do Judiciário que vem, da mesma forma, convalidando prisões antecipadas, arbitrárias, que desconsideram os fundamentos que a lei vigente exige, afrontosas por relegarem a própria sorte o princípio da presunção de inocência. Tudo isso passa por um disfarçado argumento de uma nova ordem jurídica, de um novo Brasil, no qual a prisão virou instrumento de chantagem processual, utilizando-se o cárcere como prefácio de delações criadas à margem da lei e da Constituição.
A História é cíclica e se veste sempre com a mesma roupagem. Estamos a passos largos caminhando pelas estradas visitadas por Sobral. Ele, com sua genialidade, nos ensinou que a luz no final do túnel talvez seja fazer com que o Supremo Tribunal Federal nos enxergue como o “boi da vaquejada”, protegido por uma Constituição verdadeiramente democrática e garantista.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2016-out-27/ademar-rigueira-supremo-decidiu-condenar-vaqueiro-salvou-boi