Autor: Maria Carolina de Melo Amorim
A regra no processo penal é a publicidade das ações. As exceções, em geral, se relacionavam apenas à proteção da intimidade da vítima (vítima menor ou em caso de crimes sexuais), às investigações criminais, para garantir a eficácia e utilidade das medidas restritivas adotadas contra o investigado (art. 20 do CPP) e à ação penal originária “para resguardar a dignidade do magistrado” segundo previsão da LOMAN (art. 54).
Ao regulamentar o inciso XII, parte final, do art. 5.º da CF/88 e tratar das interceptações das comunicações telefônicas, a Lei 9.296/96 foi taxativa ao determinar em seu art. 8.º a preservação do sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas às interceptações, que devem constar em autos apartados.
Entendemos, em interpretação ao dispositivo, que enquanto o sigilo das diligências dirige-se ao investigado (com intuito garantir a utilidade da medida), o sigilo das transcrições e gravações colhidas volta-se a terceiros estranhos ao processo, protegendo-se, aí, através do segredo judicial dos autos, a privacidade e intimidade dos interlocutores investigados.
Com o intuito de tutelar a intimidade do cidadão já devassada com a quebra do sigilo de suas comunicações, a Lei 9.296/96 cuidou também de criminalizar a conduta relativa à quebra do segredo judicial, através de seu art. 10, o qual reza que “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da justiça, sem autorização judicialou com objetivos não autorizados em lei” (grifado).
Do referido tipo penal, dirigido às partes que manuseiam o processo ou nele atuam, se extrai que uma vez legalmente quebrado o sigilo das comunicações telefônicas, as informações colhidas devem impreterivelmente permanecer sob segredo judicial, exigindo-se, para a configuração delitiva, a ausência de autorização judicial na divulgação dessas informações.
Ora, a contrario sensu, o art. 10 está permitindo a divulgação das informações sigilosas dos autos desde que autorizada pelo juiz, sem fazer nenhuma distinção ou restrição acerca do futuro uso dessas informações – se para viabilizar outra investigação criminal, para uso em processos cíveis ou, até mesmo, para instruir processos de natureza administrativa.
Uma primeira análise do dispositivo já seria suficiente a despertar os protestos dos constitucionalistas, já que o inciso XII do art. 5.º da CF/88 só permite a violação do sigilo das comunicações telefônicas “para fins de investigação criminal ou instrução processual criminal”. Como o inciso constitucional não trata da quebra do segredo judicial, mas tão somente da quebra do sigilo anterior (a que enseja o sigilo judicial), o assunto restou sem regulamentação na legislação.
Observe-se que o Código Penal já tratava, no capítulo dos crimes praticados por funcionários públicos, do crime de violação de sigilo funcional(1),o qual poderia ser aplicado aos servidores da Justiça em caso de quebra do segredo judicial. Tal tipo penal, no entanto, não excepcionava a caracterização delitiva à autorização judicial, ou seja, não criava uma norma permissiva que facultasse ao magistrado, indiretamente, uma autorização para elidir a conduta criminosa, como o fez o mencionado art. 10.
Poder-se-ia afirmar que a presente discussão já foi abordada pela doutrina e jurisprudência quando da análise da admissão da prova emprestada, através de um “compartilhamento do sigilo” do processo criminal a outros feitos.
Nesse sentido, já decidiu o STJ ser cabível o uso excepcional das informações colhidas com a interceptação telefônica em processo disciplinar desde que haja expressa autorização do Juízo Criminal, responsável pela preservação do sigilo de tal prova(ROMS 16429, 6.ª T. proc. 200300870460 DJE 23.06.2008).
O STF também já admitiu a utilização em procedimento administrativo disciplinar de dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas, se aquele feito tramita contra as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos dos dados sigilosos (Inq-QO 2.424-4/RJ, j. 24.04.2007).
Vê-se, então, que os Tribunais Superiores já se firmaram no mesmo sentido do art. 10 da Lei 9.296/96, qual seja, pela relativização do sigilo processual dos dados interceptados com a autorização judicial. Observe-se, no entanto, que a legislação e a jurisprudência brasileiras não cuidaram de disciplinar os pressupostos e a forma dessas autorizações para compartilhamento da prova, donde se depreende que os únicos requisitos para o decisum seria a coincidência entre as partes processuais dos dois feitos (no sentido da decisão do STF), e a necessidade de fundamentação das decisões (exigência do art. 93, IX da CF/88).
Ora, a ausência de regulamentação dos requisitos da decisão que autoriza a divulgação da prova sob sigilo – seja para uso como prova emprestada, seja para qualquer outro fim – reveste a questão de séria gravidade.
Isso porque, se a quebra do sigilo das comunicações só se faz válida quando cercada das hipóteses e requisitos constitucionais(2) e legais(3), para a quebra do segredo judicial só é exigida a mera autorização judicial. Vê-se, pois, patente a relativização das garantias do sigilo constitucional após o colhimento das informações.
A diferença de tratamento não se justifica, principalmente quando se tem em mente que os elementos colhidos a partir das interceptações telefônicas não deixaram de integrar a intimidade, privacidade, honra e imagem dos cidadãos, motivo pelo qual ainda não perderam as vestes de dados cujo sigilo é constitucionalmente assegurado. A violação do teor das gravações constitui, portanto, violação das próprias comunicações. Nesse sentido, diferenciar o deferimento de interceptação telefônica e o uso extra autos dos elementos colhidos a partir daquele deferimento tornaria desarrazoada e desnecessária a proteção constitucional.
Aliás, voltando-se à própria dicção do mencionado art. 10 da Lei 9.296/96, é certo que o legislador reputou com a mesma gravidade a conduta de quebrar o segredo da justiça e a de realizar interceptação telefônica clandestina, colocando-as no mesmo dispositivo penal e submetendo-as à mesma quantidade de pena. Não haveria motivos, pois, para se acreditar que os diálogos já interceptados não mais incorporam o direito à intimidade.
É certo que a relativização do segredo judicial pode trazer graves consequências ao cidadão por ela atingido, desmerecendo o direito à privacidade do réu.
Como se sabe, não é rara – ao contrário, hoje é comum – a divulgação na imprensa de conversas telefônicas interceptadas judicialmente. Se tais divulgações estão sendo judicialmente autorizadas, a situação é ainda mais grave do que se podia imaginar, já que a finalidade da autorização – exposição e publicação dos fatos pela imprensa – é oposta ao interesse tutelado pelas normas que determinam o sigilo judicial.
Por outro lado, ao se tratar de prova emprestada, frágeis também são as garantias de que o sigilo das transcrições e gravações será mantido e resguardado em outra esfera que não a judicial. A decisão que autoriza o compartilhamento das degravações deve, ao mínimo, determinar as medidas a evitar a propagação das informações.
Enquanto a matéria não é regulada pelo legislador ou pelos Tribunais, só nos resta rezar pelo bom senso dos magistrados quando da concessão da autorização que permita a divulgação ou o compartilhamento da prova obtida em conformidade com o inc. XII do art. 5.º da CF/88.
Notas
(1) Art. 325, CP: revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação.
(2) Art. 5.º, XII da CF/88 (exigência de ordem judicial e finalidade da produção da prova vinculada à investigação criminal ou instrução processual penal).
(3) São os requisitos legais, de acordo com o artigo 2.º, I, II e III, parágrafo único e artigos 4.º e 5.º da Lei 9.296/96: a. a demonstração dos indícios razoáveis de autoria ou participação do investigado na infração penal; b. impossibilidade de obtenção da prova por outro meio que não a quebra constitucional; c. a infração investigada relacionar-se à pena de reclusão; d.a clareza na descrição do objeto de investigação e qualificação dos investigados; e.a demonstração, no pedido que antecede a decisão, da necessidade da realização das diligências à apuração do crime e a indicação dos meios a serem empregados; f. e, por fim, a fundamentação da decisão, sob pena de nulidade, a qual deverá indicar a forma de execução da diligência e seu prazo.
Maria Carolina de Melo Amorim
Advogada criminalista em Recife/PE, mestranda em direito pela UFPE, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela ESMAPE e Faculdade Damas da Instrução Cristã.
Fonte: https://www.ibccrim.org.br